Migração
As viagens que os olhos não vêem entre o México e os EUA
O espaço é apertado. O ar rarefeito e quente. A escuridão é impenetrável. O motor do camião, a respiração de outros homens e mulheres, igualmente nervosos, cortam o silêncio tão característico do secretismo de uma operação ilegal. A fronteira é a prova de fogo, mas atravessá-la não é garantia de sucesso. Até se libertarem do espaço exíguo onde se encontram, terão de sobreviver ao calor e à falta de oxigénio que, por vezes, deita tudo a perder. Pagaram milhares de dólares pela viagem, pela perspectiva de um futuro livre de pobreza. Milhares de dólares por um sonho que pode terminar mesmo antes de começar.
A partir do México, tentam cruzar a fronteira e penetrar nos Estados Unidos. Fazem-no ilegalmente, tendo em mente que são persona non grata no destino. Fazem-no sabendo que, em caso de sucesso, terão de enfrentar grandes desafios: trabalho ilegal e xenofobia são apenas dois dos ingredientes do amargo bolo que terão de engolir no muralhado e ultra-monitorizado país comandado por Donald Trump.
Este não é um fenómeno novo. Aliás, Noelle Mason, que viveu toda a vida junto à fronteira com o México, recorda tempos em que trabalhadores mexicanos entravam e saíam dos EUA ao abrigo de programas de trabalho que implicavam migrações diárias. "Entravam de manhã, para trabalhar, e no final da jornada voltavam ao México", recorda Mason em entrevista ao P3, via Skype. A fronteira não estava fechada, apesar de existir controlo de entrada, e Noelle tinha amigos de ambos os lados da fronteira. Mas, já há duas décadas, notava diferenças de tratamento por parte dos guardas fronteiriços. "A minha pele é muito branca, sou de ascendência irlandesa, nunca me colocaram entraves no momento de regressar aos Estados Unidos. Mas amigos meus, de tez mais escura, tinham o passaporte verificado várias vezes. Essa desigualdade chocou-me ainda era eu uma criança."
Já nessa altura, diz, os mexicanos faziam os trabalhos que os norte-americanos se recusavam a fazer. "Sem o trabalho dos trabalhadores mexicanos, a economia dos Estados Unidos não seria a mesma que é hoje", argumenta. "Na Califórnia, eles faziam todo o trabalho agrícola, por exemplo. Tentaram criar programas para entregar esses trabalhos a estudantes da faculdade, mas foi um fracasso. É um tipo de trabalho muito duro, realizado sob calor intenso." O encerramento da fronteira foi imposto no início da década de 2000. "Os cartéis de droga que tinham base em Tijuana tiravam partido da migração 'livre' e foi então que surgiu a necessidade de encerramento", explica Mason. "A economia de Tijuana secou, a pobreza começou a acentuar-se no momento em que mexicanos e norte-americanos pararam de cruzar a fronteira." Foi então que o fluxo de migração ilegal do México em direcção aos Estados Unidos iniciou.
O pai de Noelle Mason trabalhava no controlo fronteiriço e as imagens que fazem parte do projecto X-Ray Vision vs. Invisibility, que a artista começou a coleccionar em 2005, sempre fizeram parte do seu léxico visual. "O meu interesse pelo uso de sistemas de vigilância como ferramenta de controlo já existe há anos. Em muitos sentidos, as imagens captadas na fronteira, com recurso a raios X, sempre me fascinaram." A mesma tecnologia que é usada para benefício de cidadãos norte-americanos é ali aplicada numa missão anti-humanitária, refere, apontando para a ironia da questão. E enumera as ferramentas: "Retrodifusão, raio X, sistemas de detecção por radar, temperatura."
Grupos de migrantes dentro de camiões-cisterna, de camiões de carga. Pessoas entre caixas ou por detrás de tectos ou fundos falsos. Crianças dentro de malas de viagem. "Como é que as pessoas viajam nestas condições?", pergunta-se a artista norte-americana. Olhando atentamente para as imagens, é possível observar a linguagem não-verbal de alguns destes migrantes. "Alguns estão encerrados sobre si mesmos. Outros parecem comunicar entre si. Mas o que dirão? O que tentarão fazer para tornar a situação menos desesperante e claustrofóbica? É a possibilidade da formação de uma narrativa a partir destas imagens que as torna mais interessantes e mais humanas."
Numa era em que a tecnologia "desumanizou" as relações humanas, Noelle sente-se reticente relativamente à publicação das imagens do seu projecto em suporte digital, como é o caso desta fotogaleria. "Somos confrontados com centenas de imagens, diariamente, tanto que perdem significado. Por isso prefiro mostrar o meu trabalho em galerias de arte. Imprimo as imagens, transformo-as em cianótipos, em bordados ou mesmo em tapetes. Isso devolve a dimensão humana às imagens, livra-as da carga digital que está inerente à sua formação. E ao mostrá-las em grande formato, como prefiro fazer, as pessoas retratadas ficam mais próximas, tornam-se mais tangíveis." É o que pretende: humanizar estes homens, mulheres e crianças.
Existe, segundo Noelle, um desligamento da sociedade civil perante este fenómeno. "Estamos a lidar com uma crise humanitária que envolve 6,5 milhões de pessoas. É tão esmagador que pode ser paralisante." Considera que estamos, enquanto parte activa deste fenómeno, estáticos. "É preciso mobilizar as pessoas. Mesmo que seja unicamente através do voto. É necessário que as pessoas se envolvam. O meu contributo é este. Não lhe chamaria activismo, parece uma palavra forte. É uma chamada de atenção."
O que empurrou Noelle para o projecto foi a visão conservadora dos seus pais relativamente à migração. "Eu fiz tudo isto para comunicar com eles. Quis chocá-los e tocá-los com as imagens, fazê-los sentir empatia pelas pessoas que estão ali retratadas." Afinal, estas imagens mostram uma realidade apenas, a dos migrantes mexicanos. Mas o problema é muito maior, crê. "Existe, hoje, um problema grave de iniquidade no mundo. E os Estados Unidos desempenham um papel fundamental neste cenário mundial. Infiltraram-se na cena política de outros países e agora estão a sofrer as consequências. Nós, norte-americanos, permitimos que isto acontecesse, é nossa responsabilidade. Há lugares que, antes do envolvimento americano, eram prósperos e que hoje têm pessoas a passar fome."