Para quem sempre viveu entre quatro paredes de cimento, passear agora entre “paredes de milho e de vinha” é um bálsamo que não se explica. Vê-se no sorriso de Judite. Natural de Lisboa, Judite Gregório veio em 2005 para Alpiarça ocupar o cargo de directora industrial numa fábrica de leite e por cá ficou. Apaixonou-se por isto. “Sei o que é perder cinco horas por dia em transportes públicos.” Alpiarça, por contraste, pareceu-lhe “o paraíso”.
É esse paraíso que mostra agora aos turistas, com programas desenhados ao gosto do cliente, no concelho e um pouco por todo o Ribatejo. Aos 55 anos, Judite decidiu mudar por completo de vida. Divorciou-se. Três meses depois perdeu o emprego quando a fábrica fechou, só para conseguir trabalho na mesma área e despedir-se no ano seguinte. “Se acabei com um casamento de 30 anos em que não era feliz, não ia ficar num trabalho em que não era feliz”, justifica.
Judite Gregório vai contando tudo de rajada, sem perguntarmos, mal começamos a caminhada pelo percurso pedestre de Alpiarça, inaugurado em Junho, parte do novo Guia de Percursos Pedestres da Lezíria do Tejo. É que a história de Judite começa agora a ensaiar um final que a deixa de sorriso largo no rosto, prova de que nunca é tarde para começar de novo. E esta é a história que a empresária quer contar aos clientes. É a história que a faz estar hoje aqui, de ténis e de mochila às costas, a enfrentar a chuva miudinha de inícios de Agosto, recreando para a Fugas a “caminhada pelos meloais” que organizou durante o Festival do Melão.
Naquele dia, o passeio começou no mercado da fruta e parque de merendas do Carril, onde o evento decorre todos os anos, nos finais de Julho. Desta vez, obedecemos ao traçado da Pequena Rota e arrancamos na Reserva Natural do Cavalo do Sorraia. É aqui que nos recebe Pedro Ferreira, responsável técnico do espaço. Estamos em zona de charneca, uma propriedade com cerca de 36 hectares, outrora parte integrante da Quinta dos Patudos, deixada em testamento pelo republicano José Relvas à população de Alpiarça.
No início do milénio, o terreno foi transformado em reserva natural, dedicada à preservação do cavalo do Sorraia, raça recuperada a partir de 1920, descendente do cavalo primitivo e autóctone do sul da Península Ibérica. “Continua ameaçada [de extinção]. Há poucos exemplares em todo o mundo, cerca de 200”, aponta Pedro Ferreira. “Todos os anos fazemos a reprodução. Este ano, tivemos cinco nascimentos.”
Os machos são depois trazidos para as cavalariças e fazem parte do grupo de animais disponíveis para as aulas de equitação e para as sessões de baptismo a cavalo. Há ainda um restaurante, um parque de merendas, um parque infantil, uma escola de treino de cães, uma quinta pedagógica com outros animais (burros, ovelhas, cabras, porcos, galinhas, patos), além do espaço envolvente por onde é possível passear.
O percurso assinalado atravessa a reserva e passa muito próximo da eguada, onde pastam as 15 éguas e os pequenos potros, mais dois cavalos lusitanos. Mais uns passos, voa uma garça-real de asas enormes, cinzentas, mesmo à nossa frente, e deixa-se pousar no topo de um sobreiro. “É raro elas ficarem tão perto.”
Patudos e campos agrícolas
Judite, hoje com 58 anos, sempre gostou dos animais e do campo, mas em turismo, confessa, nunca se tinha imaginado. Estar a guiar-nos por linhas de água e searas é fruto do acaso. “Tenho uns amigos que são produtores de vinho e, na altura em que estava desempregada, estavam com falta de pessoal para a vindima. Nunca tinha feito, mas fui experimentar.” Passou um dia, dois, oito semanas.
“Adorei a história do vinho e de saber como se produz”, conta agora. Foi essa descoberta que a fazer voltar à escola para tirar uma pós-graduação em Wine Marketing and Events, em Santarém. E gostou tanto da área de enoturismo, de que “nada sabia”, que se inscreveu no curso de Técnico de Informação e Animação Turística. “Estive ali uns meses a tirar dois cursos.”
Ainda passou por um estágio nos Açores, na empresa onde a filha trabalhava. E, no ano passado, criou a própria empresa. Desde então, organiza programas turísticos na região, em parceria com diferentes entidades, sobretudo para clientes estrangeiros. Pontualmente, há eventos únicos para grupos maiores, pensados sobretudo para o público português e para a população local. Como a caminhada pelos meloais ou a iniciativa “Há noite no museu”, organizada na Casa-Museu dos Patudos, por onde passamos agora.
Idealizada pelo homem que a 5 de Outubro de 1910 proclamou a implantação da República Portuguesa, e desenhada por Raul Lino, a Casa dos Patudos segue o estilo revivalista e nacionalista da época, integrando várias escolas e traços da arquitectura popular. Foi residência de José Relvas até à morte do político português e transformada em museu em 1960. O museu integra a colecção privada do antigo proprietário, melómano e coleccionador de arte, desde quadros assinados por José Malhoa ou Silva Porto a peças de mobiliário, porcelanas e tapeçarias.
“Não há uma vez que vá lá e não descubra outra coisa, um pormenor diferente. A casa é tão linda, tem tanta história”, vai aliciando Judite. Desta vez não temos tempo de visitá-la mas é paragem obrigatória no concelho. Para 14 de Setembro, Judite tem agendado um programa de vindimas que inclui um almoço organizado pelo grupo local “Comeres da nossa terra”, com receituário regional antigo, e uma visita à Casa dos Patudos.
Já nós seguimos caminho, agora por entre as tais “paredes de milho e de vinha”. Estamos a entrar em plena área agrícola da Vala Real de Alpiarça, uma linha de água com cerca de 65 quilómetros, que nasce próximo de Aranhas de Cima e há-de desaguar mais para sul, na margem esquerda do rio Tejo. Em poucos quilómetros, de um lado e do outro da ribeira, atravessamos “paisagens e culturas diferentes”. Vinhas, milheirais, plantações de tomate, de girassol, searas de melão.
Aninhado junto à ponte principal, fica o parque de merendas e o mercado da fruta, onde os agricultores vendem as últimas colheitas de melão e de melancia do ano. À excepção do miolo urbano da vila e da praia fluvial do Patacão, em pleno Tejo, o percurso pedestre percorre as principais atracções turísticas de Alpiarça.
Ida por uma margem e regresso à reserva natural pela outra, são cerca de dez quilómetros, fáceis de percorrer, com diferentes pontos de visita ou de paragem, como a albufeira dos Patudos, onde há quem se entretenha à pesca. “As pessoas, como sempre viveram aqui, não têm consciência do que têm”, diz, às tantas. Mas Judite quer mostrar que há “paisagens lindíssimas” para conhecer e desfrutar.