Lezíria do Tejo: o que se come nas terras da Borda d’água?
A zona da Lezíria do Tejo acaba de ganhar uma carta gastronómica e um guia de restaurantes certificados – pretexto para partir à descoberta de uma região onde o que se come, do arroz ao touro bravo, às enguias, ao sável ou à lampreia, está, de uma forma ou outra, ligado à presença do rio. As terras dos campinos e dos arrozais estão a abrir-se cada vez mais ao turismo.
Estamos sentados no Telheiro da Lúcia, na aldeia avieira das Caneiras, à beira do Tejo, perto de Santarém. Lúcia está à volta dos tachos, a preparar-nos o almoço. Já cheira bem, à famosa sopa de peixe. Lá em baixo, no rio, o pequeno barco no qual ela e o marido vão à pesca, geralmente ela a remar, ele a lançar as redes. “Na altura da lampreia, vamos todos os dias”, contam.
À nossa mesa está Armando Fernandes, investigador da história da gastronomia e autor de vários livros entre os quais um, o mais recente, que é também o pretexto que aqui nos traz: a Carta Gastronómica da Lezíria do Tejo, feita com a Confraria da Gastronomia do Ribatejo, e que é uma recolha de receitas e testemunhos sobre como se comia antigamente nesta região que tem no seu centro o rio que banha também Lisboa.
Durante alguns dias vamos à procura dos sinais dessa tradição gastronómica feita de grande escassez, e da consequente capacidade de fazer muito com pouco que caracteriza as “cozinhas pobres” por todo o mundo; mas feita também das grandes casas senhoriais desta região, das importantes produções agrícolas, dessas vastas propriedades com cereais, vinha, oliveiras, desses arrozais que tanto marcam a paisagem.
Logo na mesa da casa da dona Lúcia encontramos alguma desta história: o peixe do rio, na sopa, seguida pelo entrecosto frito acompanhado por arroz de feijoca, e, para a sobremesa, o arroz doce, incontornável numa zona onde cresce, nestas terras d’água, o arroz carolino que agora se pretende valorizar.
“Aqui, o grande vector é o rio”, vai contando Armando Fernandes. “O Tejo tem uma função de transporte, de vinhos, azeite, cereais, frutos secos. E é ele que abastece de peixe, tem uma série de espécies piscícolas que são aproveitadas numa situação em que nada se pode perder. Daí as caldeiradas.” E são várias as receitas de caldeiradas que encontramos na Carta Gastronómica.
Mas não é apenas o Tejo, há o Zêzere e o Sorraia, onde se apanham as enguias, a lampreia, a fataça ou muge, o sável – frito em fatias fininhas para desfazer as espinhas, e servido com açorda de ovas. O truque para contornar as espinhas do sável é engenhoso, conta o investigador: “Põem-se as postas fininhas numa marinada com cítricos ou com vinho branco, depois colocam-se num pano de linho e as mestres cozinheiras vão passando as mãos com força. Quando tiram o linho, as espinhas vêm agarradas ao pano.”
As terras da Borda d’água – aprendemos dias mais tarde ao visitar o Núcleo Museológico Agrícola do Museu Municipal de Benavente – não têm limites exactos, correm ao longo das duas margens do Tejo e, periodicamente, são alagadas pelas cheias, com as águas a deixar os solos profundamente férteis. São, lembra Armando Fernandes, “os terrenos dos quatro f: fortes, fundos, férteis e frescos”, que podem chegar a dar duas ou três colheitas por ano.
“Até às grandes obras de hidráulica do século XX, estas zonas eram densamente inundadas”, conta, por seu lado, Cristina Gonçalves, da Câmara Municipal de Benavente. “As pessoas dizem que depois da cheia fica o nateiro. É isso que torna os campos muito férteis.”
Era esta produtividade que atraía, em determinadas alturas do ano, muitos trabalhadores vindos sobretudos da Beira, de localidades como Pedrógão Grande ou Figueiró dos Vinhos, e que se deslocavam para a Borda d’água para estas tarefas sazonais, fossem elas as sementeiras, a monda, a ceifa ou a debulha.
Para os albergar, as grandes casas agrícolas tinham instalações próprias, onde homens e mulheres, separados por sexos, dormiam, recuperando forças para um novo dia de trabalho. Nos campos, a alimentação era assegurada pela coca, que, numa cozinha improvisada, preparava os produtos que cada trabalhador trazia.
Na sua pesquisa, Armando Fernandes entrevista muitas pessoas mais velhas, que se recordam bem da vida difícil desses tempos. Conta, por exemplo, o senhor Abel Santos Brito, de Aveiras de Cima, antigo agricultor, hoje com 76 anos, que “as pessoas não tinham vida; levavam”, e “a comida não variava: sardinhas, petingas, chicharro, sardas e bacalhau”.
Para o campo, Abel transportava “uma panelinha de lata e nela cozia batatas com chicharros ou bacalhau”. Comiam-se sopas de pão, couves, “um bocadinho de toucinho salgado e chouriço”. Nos dias de festa, havia galinha ou coelho. As memórias são muito semelhantes às de Adelaide Matos, também agricultora, de 75 anos, que acrescenta um detalhe: “Quando apanhavam um ouriço-cacheiro era uma festa […] faziam uma fogueira, queimavam-lhe os picos, esfolavam-no, estripavam-no, temperavam-no com pimentão e sal, guisando-o como se fosse um coelho em companhia de batatas ou cagarrinhas.”
Não há, contudo, motivo para preocupações. Hoje, os restaurantes da Lezíria do Tejo não servem ouriço-cacheiro. A aposta é na gastronomia regional, da qual fazem parte algumas destas comidas do campo, como o muito simples torricado, que consiste apenas de pão velho, azeite, alho e sal, sendo o pão torrado nas brasas e depois cortado em sulcos para melhor receber o azeite e os outros sabores.
Para além dos peixes do rio, nos restaurantes da região poderá encontrar-se a carne do touro bravo (esta é, afinal, zona de campinos), e diversos pratos com arroz, das cabidelas aos arrozes de tomate (outro produto emblemático da região) ou ao arroz de castanhas.
“Temos um projecto de valorização do arroz carolino das Lezírias Ribatejanas, com um festival, que terá este ano a terceira edição [de 17 a 19 de Maio]”, afirma Cristina Gonçalves, de Benavente. “Houve séculos nos quais a produção de arroz estava associada a um número enorme de mortes por paludismo, dado que as águas estagnadas trazem o mosquito. Em Benavente tivemos a primeira estação anti-sezonática [para combater a malária] e até aos anos 50 [do século XX] as pessoas ainda tomavam quinino com regularidade.”
Hoje, a realidade é muito diferente. “É tudo muito mecanizado, faz-se a sementeira por avioneta.” Além disso, está a ser feito um trabalho de melhoramento da semente que durante anos não existiu. E, confirma Cristina, vale muito a pena descobrir esta cultura dos arrozais, que faz com que a paisagem da região mude muito conforme as épocas.
“A altura mais bonita”, garante, “é no final de Abril, início de Maio, quando os campos estão todos alagados”. “Passamos numa estrada de manhã e os campos estão todos secos e depois, à tarde, já é tudo água, a seguir evoluímos para uma coisa que parece um relvado, é um verde fantástico, depois cresce, surge a espiga, fica tudo amarelo, vêm as máquinas, cortam, e lá para Novembro fazem as queimadas.”
Voltamos a um restaurante à beira do Tejo, noutra aldeia avieira, desta vez em Escaroupim, Salvaterra de Magos. O restaurante, que abriu em 2004, tem o mesmo nome da terra e chegamos precisamente no dia em que começa o Mês da Enguia (Março) promovido pela Câmara de Salvaterra de Magos. Pedimos, claro, enguias fritas com arroz de feijão e abrimos a refeição com uma empada de perdiz enquanto Júlio Martins, da Região de Turismo Alentejo/Ribatejo, nos conta a história destas aldeias avieiras que nasceram nas primeiras décadas do século XX.
“A própria gastronomia daqui tem muito a ver com a população dos avieiros, são pessoas que vieram de Vieira de Leiria, onde no Inverno o mar era bravo e não deixava ninguém ir pescar”, conta. “Procuravam outras formas de alimentação e por isso entraram pelo Tejo adentro e viviam nas bateiras, que tinham uma zona de trabalho, a cozinha e o quarto.”
A esta gente que assim vivia chamavam os locais de “ciganos do Tejo” – “quando tinham mais algum dinheiro e procuravam fixar-se junto a uma margem, faziam as casas palafitas [sobre estacas, por causa da subida das águas, como é, por exemplo, a do Telheiro da Lúcia, nas Caneiras] com pedaços de madeira que boiavam no rio” e cobertas com palha dos caniços. Mas muitas vezes eram impedidos de se fixar pelos proprietários das terras – estes chamados de “donos do chão”.
É destas histórias, e destes sabores nascidos de uma forte ligação com a terra – e, sobretudo com o rio – que se faz a gastronomia da Lezíria do Tejo. Das casas mais tradicionais aos novos restaurantes que apostam numa cozinha mais de autor, mas respeitando os produtos e as tradições locais, a Lezíria ganhou recentemente, para além da Carta Gastronómica, um Guia de Restaurantes Certificados. Para que, entre arrozais e campinos, ninguém se perca quando a fome apertar.