Do touro bravo ao bode capado, o Ribatejo de Rodrigo Castelo
Fazer chouriços de capado, criar cocós (galos anões), maturar a carne do touro, conhecer melhor o peixe e o marisco do rio — Rodrigo Castelo não pára. “Os produtores têm uma paciência de santo para mim”, diz, com um sorriso de miúdo.
No dia em que nos encontramos com Rodrigo Castelo, na sua Taberna Ó Balcão, em Santarém, ele está a preparar a apresentação que fará no Congresso dos Cozinheiros (que acontece em Lisboa entre este sábado e segunda-feira) e propõe-nos irmos conhecer os produtores de enchidos com quem está a trabalhar.
No carro, entusiasmado, explica-nos de que se trata: vamos fazer enchidos de bode capado. “Tenho vindo a estudar e já estou muito por dentro da história do capado, que se consome muito nesta zona. São tradições que tendem a acabar e está nas nossas mãos fazê-las renascer.”
O bode capado à nascença para ganhar mais gordura intramuscular é um animal que pode ser totalmente aproveitado — e é isso mesmo que Rodrigo quer mostrar no congresso. Por isso, e para já, vamos fazer enchidos. Paramos à porta da Quintinha d’Aldeia, em Pernes, onde somos recebidos pelo proprietário, Paulo Piedade, que criou este projecto familiar, com a mulher e o filho, há quatro anos e que já começou a exportar para alguns países.
Hoje vamos apenas fazer uma experiência. Rodrigo traz consigo alguns dos condimentos que quer juntar ao capado e dá-nos a cheirar o pó de pimento desidratado e a mistura de ervas, também desidratadas, que fez, deixando de fora os talos, que “são muito amargos”. Paulo vai buscar a carne. “Este é que é o famoso capado”, anuncia, enquanto Rodrigo nos mostra a tal gordura intramuscular que o animal desenvolveu.
Depois, passam os dois para uma pequena sala e, durante alguns minutos, abrem frasquinhos, fazem pesagens e tomam notas numa folha. Estão a preparar a receita para os enchidos, misturando, para além do sal, do alho e do pimentão, as coisas que Rodrigo trouxe, incluindo um vinagre de vinho tinto da Quinta do Juncal.
Com os ingredientes na carne, Paulo mete mãos à obra e vai amassando tudo perante o olhar atento de Rodrigo. Vai-se buscar tripa e enchem-se alguns chouriços que hão-de ir depois para o fumeiro. Daqui a uns dias se verá como resultou a receita. “Os produtores do Ribatejo têm uma paciência de santo para mim”, confessa mais tarde Rodrigo, explicando que os desafia com ideias que, todos sabem, não os vão tornar ricos, mas que são experiências diferentes. E Paulo garante que gosta desses desafios.
Antes de partir, vamos, aliás, provar o resultado de outra dessas experiências, a excelente língua curada e fumada de touro bravo que Rodrigo serve no seu restaurante, fatiada, e também a já célebre língua na pombinha, uma sanduíche com a língua em duas texturas, cozida e curada, com trufa e queijo. É uma forma de recuperar a pombinha, “um pão doce ribatejano, que caiu muito no esquecimento” e que faz, como muitos outros produtos, parte das suas memórias de infância. “Sou muito ligado ao Ribatejo, isto é a minha vida.”
Foi essa paixão que, ainda que por um caminho com algumas curvas, o levou até à Taberna Ó Balcão, que abriu há quatro anos. “Fiz o curso de engenharia de produção animal mas fui trabalhar para a indústria farmacêutica. A certa altura fui despedido, graças a Deus”, conta. O sonho de ter um restaurante estava lá e a mulher incentivou-o. “Dizia que o meu talento era na cozinha, e estava correcta.”
Mas não foi fácil. “Isto não era nada assim quando aqui cheguei”, recorda, apontando para o espaço do restaurante. “Foi tudo feito por mim. Tive que pedir crédito, que os bancos não davam a uma pessoa desempregada como eu estava na altura. Tenho histórias muito giras, de não ter dinheiro para comer. Quando abri, estava completamente penhorado, mas acreditei sempre e tive pessoas que acreditaram em mim.”
Conta que “desde miúdo” tem uma vontade muito grande de se superar. “Não me preocupo em ser melhor do que ninguém, preocupo-me todos os dias em ser melhor do que eu próprio no dia anterior. Ser melhor pessoa e trabalhar melhor.”
Atenção à comida do Ribatejo
Não esquece as ajudas. “Tive a sorte de cair no goto de alguns colegas de profissão que começaram a vir cozinhar para aqui, e a quem eu ligava para tirar dúvidas.” E não esquece a equipa. “Se me perguntassem há quatro anos, não acreditaria que tudo isto ia acontecer. Digo muitas vezes que é graças a Deus, mas é graças ao trabalho da equipa, todos asseguraram o meu crescimento.” Hoje tem consciência de que teve um efeito positivo em Santarém, onde abriram restaurantes novos, com conceitos diferentes, que chamam mais gente à cidade. “Há um antes e um depois do Balcão.”
Começou na sala, mas rapidamente passou para a cozinha, onde se sente verdadeiramente feliz. E, passados seis meses, assim que o restaurante entrou em alguma normalidade, pôs-se a pesquisar, à procura de produtos e receitas do Ribatejo, e a reinventá-los.
É isso que nos quer mostrar agora, com os pratos que vai preparando na cozinha e trazendo para a mesa. Depois da tábua com a língua curada e os dois tipos de chouriço de touro bravo que fez com Paulo na Quintinha d’Aldeia (cada um fez a sua receita), vem o molhinho, prato típico da região, que é o bucho do borrego recheado com tripa e servido com grão.
A seguir — e porque Rodrigo gosta também muito de trabalhar os peixes, nomeadamente os de rio — serve um coscorão do rio até ao mar, com fataça, atum, pó de camarão do rio e camarinhas, um sabor fresco e ácido mas com um toque doce e o conforto da massa de coscorão em forma de cone. Num crepe, salpicada de amêndoas e pickles, vem a saborosa carne do capado, abrindo caminho para uma sopa de peixe do rio com ovas de barbo.
Entusiasmado, Rodrigo quer dar a provar tudo o que conseguirmos comer, por isso segue-se a língua na pombinha, uns lagostins de rio, a fataça na telha, outro prato regional mas cuja receita pertence a uma família (do Ti Júlia Maçaroca, nas Caneiras) e que surge aqui na versão de Rodrigo, uma jardineira de caracoletas, um camarão gigante numa magnífica açorda de caranguejo do Tejo. E, para concluir (ou quase, que ainda faltam as sobremesas), touro bravo com legumes grelhados e uma cabidela de cocó, o galo anão local que o chef também quer recuperar.
“Ando agora com a maluqueira dos cocós”, diz. “A criação está a acabar e quem os tem é só como galos de estimação, mas é uma carne adulta e muito saborosa, só que como é rija ninguém se dá ao trabalho de a fazer. O meu pai adorava cocó de cabidela. Eu comprei agora uns 30, que estão no meu terreno.”
É um trabalho semelhante ao que fez com o touro bravo. “O touro para mim representa muito. Fui forcado, nasci no meio dos touros, é um animal muito familiar, que me deu as maiores alegrias e as maiores tristezas.” Um dos problemas quando se tenta trabalhar esta carne é o facto de os animais “não serem homogéneos, porque vêm de diferentes casas agrícolas que os alimentam de maneiras diferentes”. Além disso, “não é uma raça que tenha sido apurada para dar carne, é só para bravura”.
No entanto, Rodrigo considera-a “uma carne mais doce, com um sabor mais férreo, diferente de todas as outras e com uma potência que é fenomenal”. Numa colaboração com a Escola Superior Agrária de Santarém, onde foi aluno, estudou a maturação desta carne e conseguiu chegar ao que queria. O pedaço da vazia que nos apresenta é macio e muito saboroso. “Aqui faço grelhado, estufado, frito, faço croquetes de rabo de touro”, orgulha-se.
Chegámos à(s) sobremesa(s): pão-de-ló de Rio Maior com gelado de queijo de ovelha (feito com a Escola Agrária), e noz caramelizada; e outra, chamada Nem Tudo É Limão, com queijo de cabra curado, caramelo salgado, tomilho limão, arrepiado, lemon curd, gelado de limão e pipoca de tendão de mão de vaca (só para dar o crocante).
Está provado que com Rodrigo temos mesmo que olhar com mais atenção para o Ribatejo. “Falava-se sempre da gastronomia do Alentejo ou de Trás-os-Montes. Sempre ouvi dizer que se come muito bem no Norte, mas nunca se ouvia falar tanto do Ribatejo e nós temos produtos incríveis, que mais ninguém tem, e com uma enorme diversidade. Na serra temos o cabrito, o borrego, todas as ervas, aqui na lezíria temos o melão, o tomate, o pimento, temos as searas…”.
É pena que pratos típicos de Santarém, por exemplo, não haja muitos. Rodrigo não desanima: “Não há mas pode haver. Podemos criar. Porque não? Daqui a 100 anos o nosso prato já vai ter 100 anos.”