Contentar-se com o Cavia

A felicidade da Vanessa estava a enervar-me, principalmente porque me encontrava num estado de profunda infelicidade por causa dos queijos que nunca mais poderia comer desde que tinha descoberto a “intolerância total” à lactose.

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A palavra “serenidade” é património imaterial da Humanidade ainda que não esteja oficialmente inscrita na lista. Objectivo supremo – ou intermédio - em várias religiões, a serenidade podia agora ser usada para descrever o estado da Vanessa.

Nunca tinha visto isto e conheço-a há 30 anos. O que se passava? Que raio de transmutação tinha acontecido? As pessoas não mudam, nunca mudam, quase nada muda, ou quando muda é para voltar ao mesmo lugar da partida – este é um velho mantra que quase não falha. E agora a Vanessa parecia mudada: aquela inquietação permanente que sempre achei que, na verdade, era o que lhe dava graça, tinha desaparecido. Teria aderido ao budismo? Mas parece que a inscrição no catolicismo também produz os mesmos efeitos, embora o budismo esteja mais na moda. Mas se formos comparar rituais, a coisa de alguém entrar numa igreja católica – ou de outra religião qualquer - e rezar é um acto muito próximo do ritual da meditação budista. Ou da simples meditação que agora parece que toda a gente faz – basta arranjar uma app. Até eu pensei em recorrer à meditação para me ajudar a lidar com o stress que a Vanessa meia volta me provocava, mas agora parece que já não é preciso.

- O que é que te aconteceu? Andas no ioga? Isso é do ioga? Tornaste-te vegan? Porque é que estás tão tranquila?

Na verdade, como eu odeio mudanças, tenho a secreta esperança de que nada mude nunca – e habitualmente confirma-se, descontando o estado do mundo que, aliás, nunca se recomendou. Desta vez, parecia que não.

A Vanessa não fazia ioga. A mudança não era do ioga.

- Nada disso. Não faço ioga. Não faço nada. Trabalho, como bem, durmo e divirto-me.

Ora aqui está uma receita de vida boa, embora toda a gente me diga que juntando o ioga a coisa ainda melhora.

Mas a felicidade dela estava a enervar-me, principalmente porque me encontrava num estado de profunda infelicidade por causa dos queijos que nunca mais poderia comer desde que tinha descoberto a “intolerância total” à lactose. Tinha pesadelos com queijos Emmental gigantes a rebolarem da Suíça directamente para minha casa e eu a fechar-lhes a porta num vale de lágrimas.

- Vá, o que te aconteceu?

- Agora ando com o Cavia, como sabes.

- Sim, isso eu sei. Mas o Cavia faz-te ficar assim? Isso nunca aconteceu de todas as vezes anteriores em que andaste com o Cavia.

A resposta da Vanessa foi inesperada.

- Agora há uma grande diferença. Passei a contentar-me com o Cavia.

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