Johnson & Johnson é a primeira gigante condenada por alimentar a epidemia de opióides

Juiz do Oklahoma condenou a empresa a pagar 572 milhões de dólares. A decisão só é válida no estado e ainda pode ser revertida, mas é a primeira vitória em tribunal contra o papel da indústria numa crise que já matou 400 mil pessoas nos EUA.

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As acções do grupo subiram 5,4% logo após o anúncio do tribunal Mike Blake/REUTERS

Um dos julgamentos mais importantes das últimas décadas nos EUA terminou esta semana com uma decisão que, à primeira vista, é uma derrota histórica para a gigante Johnson & Johnson e um sério aviso para toda a indústria farmacêutica. Na segunda-feira, ao fim de quase dois meses de sessões, um juiz condenou a empresa a pagar 572 milhões de dólares (514 milhões de euros) pelo seu papel na epidemia de opióides no Oklahoma, que matou seis mil pessoas nos últimos 20 anos. 

A longo prazo, a decisão pode vir a causar um rombo numa das indústrias mais lucrativas do mundo. Mas, por enquanto, os mercados financeiros mostram-se satisfeitos: logo após o anúncio do juiz Thad Balkman, na segunda-feira, as acções da Johnson & Johnson subiram 5,4%, num sinal de alívio pelo facto de o tribunal não ter chegado perto dos 17 mil milhões de dólares (15 mil milhões de euros) pedidos pelo Ministério Público do Oklahoma.

Em causa está a acusação de que a gigante norte-americana é responsável pela crise de dependência e mortes, no Oklahoma, causada por excessos na toma de opióides analgésicos como a oxicodona ou a hidrocodona, e a posterior dependência de heroína. Em particular, o juiz deu como provada a acusação de que a Johnson & Johnson desvalorizou de forma intencional os riscos dos analgésicos e exagerou as vantagens do seu uso prolongado.

Esta é a primeira condenação em tribunal de uma empresa farmacêutica relacionada com a epidemia de opióides nos EUA, que matou quase 400 mil pessoas desde 1999, mas há muitos outros processos à espera de uma decisão em mais de 40 estados norte-americanos. Os procuradores e advogados envolvidos nesses processos esperam que a decisão do Oklahoma reforce os seus argumentos nos tribunais de outros estados – algo que não é certo, já que a Johnson & Johnson vai recorrer da decisão do juiz Balkman e as leis podem variar muito de estado para estado.

Ainda assim, o procurador-geral do Oklahoma, Mike Hunter, disse que a decisão do tribunal foi “um grande triunfo” que começou a ser preparado em 2017, quando o seu gabinete decidiu acusar a empresa à luz da lei de perturbação da ordem pública. Uma acusação que foi aceite pelo juiz na segunda-feira, mas que é vista com cautela por alguns especialistas: em Maio, um juiz do Dacota do Norte rejeitou uma acusação semelhante contra a farmacêutica Purdue.

Sabrina Strong, advogada da Johnson & Johnson, anunciou que a empresa vai recorrer da decisão do juiz. “Temos compaixão por quem sofre com o uso de opióides, mas a Johnson & Johnson não provocou a crise de excesso de uso no Oklahoma, nem em qualquer outro sítio no país.”

Para além dos processos que estão em curso em dezenas de estados contra várias empresas farmacêuticas, em Outubro vai começar a ser julgado um processo a nível federal, num tribunal do Ohio, que junta mais de 2000 queixas. Sendo a nível federal, e não estadual, é uma tentativa para se obter uma decisão que sirva de referência em todo o país.

A decisão do tribunal do Oklahoma que condenou a Johnson & Johnson a pagar 570 milhões de dólares (para um ano de programas e políticas com vista à atenuação dos efeitos da crise) junta-se aos acordos entre outras empresas e o estado norte-americano, num total de quase mil milhões de dólares (899 milhões de euros): já este ano, a Purdue aceitou pagar 270 milhões de dólares (242 milhões de euros) e a Teva pagou 85 milhões de dólares (76 milhões de euros) para não ir a tribunal.

400 mil mortes desde 1999

Em causa está uma epidemia de dependência e mortes por excesso de uso de analgésicos e outros opióides, como a heroína, que já matou quase 400 mil pessoas em todo o país desde 1999.

Há mais de 20 anos, numa altura em que os medicamentos fortes para o alívio da dor eram destinados, na maioria dos casos, a doentes com cancro e em fim de vida, uma empresa farmacêutica norte-americana lançou no mercado um novo comprimido que prometia ser mais eficaz do que qualquer outro da mesma categoria.

Lançado em 1995, o OxyContin, da empresa Purdue, tinha como único princípio activo a oxicodona – um opióide criado em laboratório, mais potente do que a morfina e com um efeito garantido de 12 horas, superior a qualquer genérico disponível na altura.

Duas décadas mais tarde, em Maio de 2016, o jornal norte-americano Los Angeles Times publicava uma grande investigação sobre os anos dourados da Purdue e do seu OxyContin. Uma história, segundo o jornal, de mentiras, manipulação e subornos que foi fundamental para a epidemia nos EUA – uma epidemia que já matou quase 400 mil pessoas, por sobredosagem de opióides como a oxicodona e o mais potente fentanilo, mas também por heroína, a que muitos pacientes recorreram quando os analgésicos se tornaram insuficientes.

De acordo com a investigação do LA Times, a farmacêutica sabia que o seu medicamento não tinha um efeito de 12 horas, mas continuou a vendê-lo com essa informação mesmo quando os médicos começaram a reportar queixas dos pacientes.

Outros médicos, um pouco por todo o país, foram alimentando o negócio de milhares de milhões de dólares, dando origem ao termo “turistas de receitas médicas” – os norte-americanos que viajavam até à Florida para comprar comprimidos de oxicodona ao longo de uma rota inter-estados conhecida como “Auto-estrada azul” (da cor dos comprimidos de oxicodona da empresa Mallinckrodt) ou “Expresso oxy”.

Segundo os documentos consultados pelo jornal norte-americano, os representantes da farmacêutica disseram aos médicos para prescreverem doses maiores, espaçadas pelas mesmas 12 horas – afinal, esse prometido efeito prolongado era o grande trunfo do OxyContin em relação aos genéricos disponíveis no mercado.

Com o sucesso da Purdue, muitas outras farmacêuticas começaram a produzir e a vender os seus próprios opióides, inundando o mercado norte-americano com os analgésicos que acabaram por dar origem à maior crise de dependência de sempre no país. Os medicamentos que eram receitados a pacientes com dor crónica começaram a chegar aos familiares e amigos e acabaram a ser vendidos no mercado negro, sendo também usados para aumentar os efeitos da heroína, por exemplo.

Essa crise de mortes por sobredosagem de opióides, cuja responsabilidade é atribuída às farmacêuticas e às grandes cadeias de retalho, segundo os processos em curso nos tribunais norte-americanos, transformou-se numa epidemia na década de 2000. Por essa altura, os traficantes inundaram o mercado norte-americano de heroína, para aproveitarem a procura de novos consumidores para quem os analgésicos ou já não faziam efeito, ou foram ficando menos acessíveis.

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