A ascensão da mobilidade activa e eléctrica?
A transição a que se assiste poderá ser uma oportunidade de melhorar a vida e a saúde das pessoas e aumentar a produtividade da economia e a riqueza do país.
Nos últimos 20 anos, apesar do aumento do volume de passageiros transportados, as emissões dos poluentes relacionados com o sector dos transportes diminuíram significativamente. Contudo, o tráfego automóvel permanece a principal origem da poluição nos centros urbanos e importante fonte de emissão de partículas atmosféricas e óxidos de azoto.
Só agora se começa a perceber melhor o impacte total desta poluição sobre a saúde humana. Um artigo recente do PÚBLICO fala de uma investigação publicada no European Heart Journal, desenvolvida pelo Instituto Max Plank de Química e a Universidade Médica de Mainz (ambos na Alemanha), que revela que, apenas em Portugal, e por causa das partículas finas, a poluição do ar afinal será responsável por cerca de 15 mil mortes por ano – muito acima das seis mil estimadas anteriormente pela Agência Europeia do Ambiente e cerca de 30 vezes o valor da nossa sinistralidade rodoviária!
Não é assim surpreendente que, com o objectivo de reduzir o impacte ambiental da mobilidade urbana e melhorar a saúde e o bem-estar das populações, muitas cidades introduzam e promovam formas de mobilidade alternativas e restrinjam ou mesmo proíbam a mobilidade privada convencional. Das medidas propostas, destacam-se a mobilidade activa (andar a pé ou de bicicleta) em articulação com os transportes públicos nas deslocações mais curtas (até 5 km), já que a maioria das viagens de transporte público envolve uma caminhada ou a utilização da bicicleta, e a mobilidade eléctrica.
A ascensão da nova mobilidade activa e eléctrica reduz as emissões para a atmosfera, melhora a qualidade do ar e reduz o ruído. A mobilidade activa ainda aumenta a atividade física da população e reduz o número de acidentes graves e o congestionamento provocado pelo tráfego motorizado, que causa ansiedade e depressão.
Existem sinais promissores na adopção destas novas formas de mobilidade. O número de sistemas de partilha de bicicletas no mundo inteiro já deverá seja superior a 800, correspondendo a cerca de 900.000 bicicletas disponíveis. Na Europa, Amesterdão e Copenhaga são cidades de referência: 40-50% das deslocações diárias são feitas a pé ou de bicicleta e 20-30% em transportes públicos, restando apenas 20-30% para o transporte individual motorizado. Ainda em Copenhaga, onde foi estimado que a utilização da bicicleta durante três horas por semana reduz o risco de mortalidade em 28%, salienta-se a construção de uma rede de “autoestradas urbanas para bicicletas”.
O hiato entre Portugal e os países que lideram a transição da mobilidade é notório, apesar de alguns sinais positivos desde que a Grande Recessão terminou. Em Lisboa, cidade das sete colinas e, portanto, com um relevo menos favorável para a mobilidade activa, a recente re-estruturação da infra-estrutura urbana em termos de passeios e ciclovias contribui para a promoção dos modos activos de circulação, com resultados promissores mas ainda muito tímidos no total das deslocações dos seus residentes. Contudo, é a elevada dependência do transporte privado e a adopção lenta dos veículos eléctricos (lembremos que Portugal tem uma taxa relativamente baixa de penetração de veículos eléctricos, não obstante as elevadas taxas de crescimento nos últimos dois anos) que nos deve preocupar mais no atraso face aos países que lideram nesta transição.
Não tinha de ser assim. No início do século XXI fomos pioneiros no desenvolvimento duma rede nacional de postos de carregamento e nos incentivos financeiros e fiscais à aquisição de veículos eléctricos, mas os consumidores portugueses, por vários motivos, não aderiram a esta tecnologia.
Argumentos persuasivos têm sido ouvidos na discussão pública para adiar ou pelo menos atrasar a transição energética. A saber: a produção dos veículos eléctricos (por causa das baterias) tem maior impacte ambiental que a produção dos veículos com motor de combustão interna; a produção de electricidade tem que ser descarbonizada para beneficiarmos integralmente das vantagens dos eléctricos; os veículos com motor de combustão interna estão a ficar mais eficientes energeticamente (e, portanto, terão menores emissões); os veículos eléctricos têm limitações na autonomia; é necessário garantir acesso a postos de carregamento; e, por fim, questiona-se a capacidade da rede eléctrica suportar esta transição.
Ora, no mercado mundial, onde, em Agosto de 2018, já se tinha chegado a quatro milhões de veículos eléctricos, e se previa um crescimento de 25% nos seis meses seguintes, verifica-se o surgimento de uma grande variedade de veículos com maiores autonomias. Relatórios recentes da Agência Internacional da Energia e da Agência Europeia do Ambiente afirmam que, com a actual produção eléctrica só parcialmente descarbonizada e com medidas de reciclagem das baterias, os veículos eléctricos disponíveis hoje no mercado têm menor impacte ambiental desde que o aumento na quota de mercado de veículos eléctricos seja acompanhado pela manutenção ou aumento da percentagem de produção renovável no sistema eléctrico. Essa redução do impacte ao nível de aquecimento global, considerando o ciclo de vida total do veículo, poderá chegar a metade do de um veículo convencional, tendo em conta o mix eléctrico europeu de 2015.
E, com as fortes tendências de redução de custos na produção das baterias e aumento da sua capacidade, as previsões são que os veículos eléctricos em quatro a cinco anos serão mais baratos que os veiculos convencionais (especialmente quando se considera o chamado Total Cost of Ownwership, os custos totais suportados pelo proprietário, incluindo energia e manutenção, ao longo de todo o seu ciclo de vida).
O debate à volta desta transição da mobilidade tem galvanizado ambos os lados do argumento e assiste-se a uma progressiva radicalização das suas posições e mensagens. O que é inegável é que os níveis de concentração de poluentes locais máximos desejáveis continuam a ser ultrapassados nos grandes centros urbanos e os níveis de congestionamento continuam a ser elevados e persistentes. Isto mostra-nos que as decisões públicas e privadas tomadas com base no preço do “serviço de mobilidade” não serão as óptimas, já que este não inclui todos os custos ou externalidades que são suportados pelos indivíduos e pela sociedade. Assim, atendendo a esta notória falha de mercado, é indiscutível a necessidade de uma intervenção pública nesta matéria.
Por fim, um ponto importante: trabalho realizado no IST, quer em artigos científicos, quer no projecto MEET2030 (em parceria com o BCSD Portugal e várias das maiores empresas portuguesas), aponta para uma forte relação entre energia (através da eficiência na conversão de energia em trabalho) e crescimento económico. É uma relação bidireccional. O aumento da eficiência produz crescimento económico e o crescimento económico leva a um aumento do consumo de energia (rebound). Apesar desta dificuldade em reduzir os consumos energéticos num contexto de crescimento económico, sabemos agora que quando aumentamos a eficiência energética produzimos mais riqueza. Os motores eléctricos têm uma eficiência muito superior na produção de trabalho mecânico. E o sector de transportes, ainda dependente de combustíveis fósseis, é onde a oportunidade de aproveitar este potencial de melhoria de eficiência é maior.
Assim, a transição de mobilidade e energética poderá não ser um custo para a sociedade. Se encarada da maneira certa, poderá ser uma oportunidade de melhorar a vida e a saúde das pessoas e aumentar a produtividade da economia e a riqueza do país. Professores e investigadores em Ambiente, Energia, Transportes e Desenvolvimento Sustentável no Instituto Superior Técnico
Os autores escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico