Aqui Leonardo da Vinci mudou de ideias
Há um desenho escondido n’A Virgem dos Rochedos, uma das obras mais estudadas de um dos mestres incontestados do Renascimento. Entre Novembro e Janeiro de 2020 uma exposição na National Gallery, em Londres, vai concentrar-se nele e nos métodos de trabalho do pintor.
Desde 2005 que se sabia que o desenho subjacente à pintura A Virgem dos Rochedos (c.1491/2-9 e 1506-8) mostrava Maria ajoelhada, com o rosto praticamente de perfil e a mão esquerda sobre o peito, numa posição bem diferente da que apresenta nesta obra de Leonardo da Vinci que hoje faz parte da colecção da National Gallery de Londres. O que não se sabia era que este mestre tinha reimaginado toda a composição mesmo antes de a pintar.
Submetida a um ambicioso estudo técnico, A Virgem dos Rochedos — a segunda de duas versões que Leonardo fez do mesmo tema, estando a outra no Museu do Louvre, em Paris — pode agora dar a curadores, conservadores e historiadores de arte informações muito ricas sobre o método de trabalho do artista italiano.
Recorrendo à reflectografia de infravermelhos, que permite ver o que está por baixo das camadas de tinta, e a outras sofisticadas técnicas de recolha e tratamento de imagem, os especialistas ficaram em condições de afirmar que Leonardo começou a trabalhar numa pintura que acabou por abandonar para se dedicar à que hoje podemos ver — o material que o museu londrino disponibiliza no seu site explica em traços largos as conclusões do projecto de investigação, mostrando até que ponto o artista mudou definitivamente de ideias quando estava a executar esta obra. Por que razão o fez é ainda um “mistério”, palavra com que nos cruzamos muitas vezes quando se trata do universo deste homem que foi também engenheiro, cientista e arquitecto, uma das figuras mais fascinantes do Renascimento.
Dois desenhos escondidos
Na intricada rede de traços que a tecnologia pôs a descoberto podem identificar-se dois desenhos subjacentes: um para a pintura que estava inicialmente pensada e que foi posta de lado (a composição A) e outro para a versão que chegou até nós, mas que também sofreu alterações (composição B).
Na composição A, a Virgem Maria aparece com o braço direito esticado, numa posição em que estaria já, muito provavelmente, ajoelhada em adoração do seu filho, embora em 2005 não houvesse sinais da criança no desenho — o Cristo e o anjo, que estão muito mais acima na composição do que na versão pintada, não se viam. Hoje percebe-se que, inicialmente, Leonardo quis que o anjo abraçasse mais o Menino Jesus e que olhasse para Ele em vez de olhar para fora da pintura.
“Agora compreendemos melhor a disposição do grupo”, disse Larry Keith, responsável pelo departamento de restauro e conservação da National Gallery, à televisão pública britânica, ressalvando que mais dados poderão surgir com o avanço da investigação. Seja como for, o que descobriram até ao momento “já traz novidades sobre como Leonardo da Vinci pensava naquela altura”. Além disso, estes desenhos, acrescentou Keith à BBC, vêm sublinhar algo que já sabíamos, que “Leonardo era um artista permanentemente em mudança, a ajustar-se, a aprimorar-se”.
Para este estudo, à equipa da National Gallery juntaram-se técnicos de dois organismos florentinos que são referências nas áreas do estudo e da conservação de obras de arte: o Istituto Nazionale di Ottica Aplicata e o Opificio delle Pietre Dure.
Uma encomenda, duas pinturas
A Virgem dos Rochedos mostra Maria, Cristo, São João Baptista e um anjo; em fundo, uma paisagem com montanhas, grutas e água, provavelmente um rio. Leonardo escolheu um entorno escurecido para que os rostos das figuras pudessem ser trabalhados com muita luz, de modo a que o efeito geral da pintura beneficiasse desse contraste.
Na sequência da encomenda feita em 1483 pela Confraria da Imaculada Conceição para a sua capela na Igreja de S. Francisco Maior, em Milão, Leonardo acabaria por pintar duas versões do mesmo tema por causa de… dinheiro. Os especialistas avançam como hipótese que o artista, não satisfeito com o bónus que o encomendador lhe tinha prometido mal o trabalho estivesse terminado (Leonardo já era conhecido por deixar obras a meio), tenha decidido, então, vender a primeira versão (a do Louvre) a um outro cliente, retomando mais tarde o trabalho que viria a resultar na pintura da National Gallery.
Numa primeira fase, o artista estaria determinado a que essa obra, mesmo mantendo o tema, fosse radicalmente diferente, mas viria a acabar por retomar a composição original. Uma comparação entre a versão de Paris e a de Londres, que estiveram juntas pela última vez numa exposição inaugurada em 2011, torna-o evidente.
Por ser uma segunda versão, e por, em parte, Leonardo não gostar de se “repetir”, acreditou-se durante décadas que a da National Gallery teria sido feita, sobretudo, pelos seus discípulos — uma tese que a análise rigorosa da pintura antecedendo os trabalhos de limpeza e restauro a que foi sujeita entre 2008 e 2010 veio contrariar, afirmando, não sem contestação, que é a mão de Leonardo que se reconhece em grandes secções do quadro.
Segundo o resumo do novo estudo técnico, no que toca ao desenho preparatório para a composição A de A Virgem dos Rochedos (a que o artista abandonou), Leonardo tanto o executou livremente sobre a superfície, como para lá transferiu elementos que tinha já fixado previamente em cartões, fazendo apenas pequenas marcas que depois unia com um traço contínuo, à semelhança do que acontece com os jogos em que as crianças fazem contornos de animais e de objectos ligando um ponto ao seguinte. O mesmo se passou com a composição B, em que o esboço mais espontâneo convive com o traço mais rigoroso, controlado.
Ao que parece, Leonardo terá usado vários cartões de cabeças e mãos para que o trabalho fosse mais fácil e rápido, prática corrente na época — os especialistas encontram fortes semelhanças, por exemplo, entre o gesto da mão sobre o peito da Virgem e o do apóstolo Filipe n’A Última Ceia —, executando as alterações que considerava necessárias apenas na altura de passar do desenho à pintura.
Tirando partido deste estudo, entre 9 de Novembro e 12 de Janeiro de 2020 a National Gallery vai convidar os seus visitantes a participarem numa “exposição imersiva”, carregada de tecnologia. Objectivo? Promover um “mergulho” nesta pintura de Leonardo e no seu processo criativo com base nos desenhos subjacentes, contando com a experiência da 59 Productions, a empresa responsável pelo filme da abertura dos Jogos Olímpicos de 2012, assim como pela direcção criativa e pelo design do blockbuster que o V&A centrou na vida e na carreira de David Bowie (David Bowie Is).
Quem percorrer as salas de Leonardo: Experience a Masterpiece, garante a National Gallery numa nota de imprensa, poderá, por exemplo, “entrar” numa réplica virtual da capela milanesa a cujo altar A Virgem dos Rochedos estava destinada e procurar perceber, a partir da própria pesquisa do pintor, como é que ele usava a luz e a sombra para modelar as figuras, para lhes dar volume.