Desenho esquecido numa pasta de cartão é afinal de Leonardo da Vinci e vale 15 milhões
Leiloeira francesa identifica desenho do mestre do Renascimento. Representa o martírio de S. Sebastião e fará parte de um lote de estudos que deverão ter dado origem a uma pintura que entretanto se perdeu. A história foi contada pelo The New York Times e pôs o mercado da arte em alerta.
Um médico aposentado francês entra numa importante leiloeira de Paris levando consigo uma pasta de cartão com 14 desenhos, quase todos italianos e dos séculos XVI e XVII, que pertencera ao seu pai, um bibliófilo. Tivera-os em casa durante anos sem lhes prestar atenção e entretanto decidira avaliá-los. Estava muito longe de saber que entre aqueles papéis que durante tanto tempo desconsiderara estava um estudo para um martírio de S. Sebastião semelhante a outros que Leonardo da Vinci fizera. Mais, estava muito longe de sequer supor que se tratava, na verdade, de um original de um dos mestres incontestados do Renascimento.
Thaddée Prate, director do departamento de pintura e desenho antigos da leiloeira Tajan, deteve-se naquele santo em tronco nu mas sem as flechas que habitualmente marcam a sua iconografia, apercebeu-se da sua qualidade sem se atrever a estabelecer-lhe qualquer parentesco e resolveu consultar outro especialista, o marchand Patrick de Bayser.
Bayser começou por lhe chamar a atenção para o desenho no verso da folha que mostra o santo atado a uma árvore. Trata-se de um pequeno estudo científico sobre a sombra da luz de uma vela que inclui anotações em espelho, algo comum em Leonardo da Vinci (1452-1519). Depois, este especialista nos grandes mestres da pintura antiga perguntou a Thaddée Prate se reparara que o autor era canhoto (como Leonardo). Ambos ficaram estupefactos com a mera possibilidade de estarem perante um desenho do mestre.
Como nestas atribuições sempre sujeitas a polémicas o melhor é jogar pelo seguro, Prate ouviu também Carmen C. Bambach, curadora de desenho espanhol e italiano do Metropolitan Museum (Met) e coordenadora do catálogo para a exposição que este museu nova-iorquino dedicou ao mestre do Renascimento em 2003 (Leonardo da Vinci, Master Draftman), a primeira retrospectiva americana centrada no trabalho do artista sobre papel. Bambach não só confirmou tratar-se de um Leonardo, como lhe fixou uma data – segundo ela, o desenho terá sido feito entre 1482 e 1485, numa fase inicial da estadia do artista na corte milanesa, período em que pintou a primeira versão de A Virgem dos Rochedos, que hoje faz parte da colecção do Museu do Louvre, em Paris (a segunda versão está na National Gallery de Londres).
A história vem contada no diário The New York Times, a quem a curadora do Met garantiu que a atribuição é “realmente indiscutível”. “O meu coração dispara sempre que penso nesse desenho”, disse, admitindo que, mal o viu, os olhos lhe saltaram das órbitas.
Encontrado o autor não foi difícil aos profissionais da leiloeira parisiense atribuir-lhe um valor – qualquer coisa como 15 milhões de euros. Há 15 anos que não aparecia um desenho de Leonardo no mercado de leilões. A última vez que isso aconteceu foi em Londres, quando a Sotheby’s levou à praça um estudo posterior representando Hércules (1506-1508) que acabaria por vender mais tarde, por meio milhão de euros, ao Met e a um casal de coleccionadores privados.
Segundo a publicação especializada The Art Newspaper, Leonardo faz referência a oito representações de S. Sebastião no Codex Atlanticus (1478-1519) – a sua célebre colecção de 12 volumes que guardam desenhos, textos e estudos científicos sobre os mais diversos temas, hoje à guarda da Biblioteca Ambrosiana de Milão – e, dessas oito, só três estão hoje identificadas, sendo esta uma delas (as outras duas estão em museus em Hamburgo, Alemanha, e em Baiona, França).
Para Carmen C. Bambach, o que agora foi descoberto é o mais desenvolvido desses três estudos para uma possível pintura deste santo que, segundo a tradição, foi um soldado romano e que acabou por morrer por ordem do imperador Diocleciano. Uma pintura que, entretanto, se terá perdido. Nele, diz a curadora do Met, torna-se evidente que Leonardo mudou várias vezes de ideias em relação à posição da figura, que é explorada com uma imensa energia. “É de uma espontaneidade furiosa.”
O desenho do santo martirizado, com 19x12,7 cm, está agora protegido por uma moldura dourada italiana da Renascença, que repousa sobre um velho cavalete de madeira numa das salas da leiloeira Tajan. Se irá daí para as paredes de um grande museu ou para as da sala de um oligarca russo, não se sabe ainda. O destino do desenho não parece preocupar o seu actual proprietário.
Foi preciso meio ano para que Thaddée Prate se munisse da informação necessária para comunicar ao cliente, que lhe pediu anonimato, que o pai lhe deixara um Leonardo. O especialista da leiloeira previa chocá-lo com tal notícia, mas foi ele quem saiu da sua casa chocado: “Estou muito satisfeito”, disse-lhe num tom calmo o homem que lhe levara os desenhos para avaliar meses antes, “mas eu tenho outros interesses na vida para além do dinheiro”.
A Tajan ainda não veio dizer se irá levar à praça o desenho descoberto, mas o diário espanhol El País escreve já que a casa parisiense tenciona leiloá-lo em Junho do próximo ano. Este estudo do martírio de S. Sebastião pode vir a receber uma proibição de exportação, caso o governo decida considerá-lo um "tesouro nacional". Se assim for, e segundo a lei francesa, o Estado terá então 30 meses para reunir o dinheiro necessário para o comprar a preço de mercado. Nem um cêntimo a menos.