A Praia do Sul da Ericeira corre-nos nas veias há cinco gerações
Esta é a praia onde ficamos quando chuvisca ou quando o vento é agreste, de casaco vestido, a ver as gaivotas aterrar na areia à procura dos despojos dos veraneantes. Até ao sol se pôr, porque não há pôr do sol como este.
Sair de Lisboa, com o tempo quente e abafado, e chegar à Ericeira, onde passa uma brisa fresca, é uma alegria constante e sempre renovada. Há um condicionamento qualquer, que Pavlov explicará, que nos faz cantar o hino da terra, mal vemos uma pontinha daquele mar: “Ericeira, Onde o Mar é Mais Azul / Nas belas praias do sul / De doirada e fresca areia / Ericeira, és tão bela e tão formosa...” Embora já sejamos todos crescidos, não resistimos a acompanhar o ritmo com palmas e gargalhadas, de tão ridículos que somos. Mas repetimos, sempre, porque ver aquele mar imenso enche-nos o peito; imaginar o seu cheiro tão característico, por causa das algas, faz-nos esquecer de imediato as correrias da semana.
Não há volta a dar, a Ericeira está na moda. Se quando éramos miúdos os nossos amigos nos olhavam com comiseração porque passávamos férias ali, hoje a vila das casinhas caiadas e das janelas debruadas a azul forte enche-se de gente, vinda de todo o mundo, à procura das ondas da Reserva Mundial de Surf. Mas nós não somos “agostinhos”, uma referência aos que chegam em Agosto, nem “jagozes”, os autóctones, as gentes do mar.
Não somos “ericeirenses”, embora gostássemos – quem sabe, na velhice? –, mas somos “ericeiristas”, pertencemos àquela casta de turistas que frequenta há tantos anos a terra que é “quase” como se fosse de lá. A Ericeira corre-nos nas veias há cinco gerações. Os meus bisavós saíam de Lisboa e arrendavam uma pequena casa na Rua do Norte. Os bisnetos cresceram, tiveram filhos e agora é a vez de aqueles usufruírem da praia do Sul, mais ou menos com as mesmas rotinas que os trisavós, no início do século XX.
As fotografias e as aguarelas já amarelecidas mostram que os toldos às riscas ficavam mais próximos do Hotel Turismo e dos seus telhados verdes. Com a minha avó, os primos chegavam cedo, acampavam na sombra da barraca, comiam um bolo, brincavam nas poças durante a maré baixa, de balde na mão, à procura de caranguejos e estrelas-do-mar – que devolviam ao mar antes de voltarmos a casa para um almoço tardio, seguido da sesta, de brincadeiras no pinhal e barrigadas de figos. Este foi o nosso rame-rame quando os miúdos eram pequenos.
Agora, chegamos àquela hora que não se deve estar na praia, ficamos debaixo do toldo até o sol ser mais complacente (ou a chuva miudinha passar), e ali fazemos tudo. Lemos, comemos, dormimos, pomos a conversa em dia com os vizinhos que revemos anualmente, vemos os miúdos crescer. Os banhos são seguros, já que não há correntes, só ondas que batem convictas na areia, derrubando os mais incautos. Quando chegam as marés-vivas, só os mais corajosos mergulham nas ondas de três metros que galgam a areia e chegam às barracas com uma velocidade que continua a surpreender-nos. Saltamos das cadeiras, apanhamos as toalhas num ápice e rimos das fintas que fazemos ao mar. Ou então suspiramos quando ele nos engana.
O dia prolonga-se e ficamos mesmo depois de sermos desalojados, quando os panos das barracas e dos toldos são recolhidos, e os vizinhos se despedem com um “até logo” – invariavelmente, reencontramo-los à noite, na vila. Ficamos quando chuvisca ou quando o vento é agreste, de casaco vestido; até ao sol se pôr porque não há pôr-do-sol como aquele. Ficamos e imaginamos a próxima geração, ali, connosco, a ver as gaivotas aterrarem à procura dos despojos dos veraneantes e os últimos banhos, em contraluz.