A força incómoda do passado
Em 1989 tinha-se uma noção muito clara da deriva a que este “acordo” nos poderia levar. Não teria sido muito mais sensata a coragem de evitar o pântano para o qual se encaminhou a língua portuguesa?
As pessoas convivem mal com o que não está na moda e insistem na busca de pequenos rituais e conquistas ilusórias, com que, pelo menos, tenham a vaga sensação de actualidade. O medo de ficar para trás e a atracção por uma falsa modernidade produzem verdadeiros tratados de oca intervenção estratégica (empresarial, desportiva, sociológica, cultural), tomados como imperativos à escala nacional e internacional, e tidos numa perspectiva de desígnio redentor titânico. O que se fez e continua a fazer à língua escrita é o exemplo de uma empresa que, embora assente em grupos de trabalho especializados, não se fez acompanhar do elementar princípio do contraditório, tendo sido criado um cenário de dominação e imposição quase absoluto, favorável à implementação do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90). O Euro 2004 (futebol), organizado em Portugal, legitimou a construção e renovação de dez estádios, alguns dos quais se tornaram uma fonte de prejuízos para as autarquias envolvidas, com encargos mensais astronómicos, tendo sido ponderada a demolição de um ou dois deles. Há facturas que ainda se pagam. No que toca à língua escrita, não se percebe o que fazer com ela. Foi isso mesmo que se passou nesta última sexta-feira: o Grupo de Trabalho para a Avaliação do Impacto da Aplicação do Acordo Ortográfico não reuniu consenso para a possibilidade de o alterar ou aperfeiçoar.
No parecer sobre o Anteprojecto de Bases da Ortografia Unificada da Língua Portuguesa de 1989, elaborado pela Comissão Nacional da Língua Portuguesa (CNLP – com coordenação do Professor Vítor Manuel Aguiar e Silva), pode ler-se no ponto 1.4.3: “É duvidoso o efeito unificador de um acordo ortográfico, atendendo à maior relevância comparativa do léxico, da sintaxe e até da fonética; mais importante seria a integração desse acordo (mas não nos termos do Anteprojecto adiante criticados) numa política da língua, bem definida, institucionalizada e implementada em Portugal e em toda a comunidade dos países luso-falantes, e assente numa sua co-responsabilização em convénio ao mais alto nível.” Em 1989 tinha-se uma noção muito clara da deriva a que este “acordo” nos poderia levar. Não teria sido muito mais sensata a coragem de evitar o pântano para o qual se encaminhou a língua portuguesa? Esse é o único consenso: a coisa está complicada e seja qual for a solução que surgir, ela será sempre a menos má e nunca uma boa solução. Seja como for, tratar-se-á de uma solução política, já que o afastamento da CNLP da esfera de decisão (recorde-se que Aguiar e Silva se demitiu do cargo daquele órgão de aconselhamento do governo) não deixa transparecer outro modo.
Alertava-se, em 1989, para os custos da implementação do AO90: “A entrada em vigor do Acordo provocaria uma recessão na compra de dicionários, enciclopédias e prontuários; a rectificação deste tipo de livros acarretaria um gasto de mais de cinco milhões de contos, só em custo de composição e fotolitos; milhões de livros ficariam desactualizados (…).” Os custos, hoje, são outros. A revogação do “acordo” traria custos estrondosos, como se sabe. No entanto, muito recentemente, a Comissão de Educação da Câmara dos Deputados do Brasil aprovou um requerimento para discutir a revogação do Acordo Ortográfico. Ao que parece, os erros do passado somam-se às trapalhadas do presente. Quem sabe alguma lucidez possa restituir à grafia aquilo de que ela foi privada, para que a factura da inconsistência não seja o preço eterno a pagar.
A dicotomia passado/presente deu sempre azo a combates sustentados em chavões, na arena imprecisa da semântica. Para o comum opinante, quem se posiciona em função de fórmulas passadas ou habituais não se exime a ser tomado como um Tomás de Alencar (se presumirmos a sua colagem a certo romantismo serôdio, em contraposição com o diletante Carlos da Maia, símbolo do falhanço Regenerador) ou como um Velho do Restelo (se excluirmos tudo o que nele possa ser considerado razão, contenção, sensatez e, de algum modo, a tensão dilemática de Camões). É nesta relação dicotómica que, em parte, os defensores do “acordo” se amparam, procurando colar aos seus críticos a reacção passadista e saudosista: a bacoca “Querela dos Antigos e dos Modernos”, como lhe chamou um dia António Guerreiro. Com alguma insídia e longe de uma discussão séria (e minimamente apropriada), procuraram ultimamente insinuar que os anti-acordistas são, também, os novos analfabetos do século XXI. De alguma forma, esse é o argumento com que se imputa alguém de não estar dotado de ferramentas técnicas (o que, no campo laboral, é um pernicioso factor de desqualificação do trabalhador) e de não se encontrar apetrechado da última aplicação para telemóvel. Não é senão o raciocínio indigente de quem se deslumbra acriticamente com a novidade e parte de um pressuposto de argumentação estrepitosa, tendente à criação de ondas de choque de efeito provisório. Para usar dialecto ao mesmo nível, ao menos Alencar não foi para a cama com a irmã.
Na Prova Final de Português (9.º ano, 2.ª fase), optou-se pela forma “espectadores”, com c (página 4). O nosso analfabetismo é a percepção destas incongruências. E somos, dizem, uma minoria.