O duplo ónus do erro médico
Urge a adoção de medidas que, por um lado, reduzam o potencial para a ocorrência de erros médicos, e, por outro lado, asseverem um processo de inquérito rigoroso, imparcial, célere e justo.
Qualquer pessoa vítima de um erro médico, em Portugal, é vítima por dois motivos: em primeiro lugar, por sofrer as consequências do erro propriamente dito, e, não menos importante, por sê-lo num país onde o sistema judicial não está preparado para lidar com esta temática e em que uma decisão demora, em média, cerca de dez anos a ser tomada.
É o caso de Alexandra Costa, que, em 1997, foi vítima de um erro médico durante o parto da sua filha. Não obstante os evidentes riscos que a continuação do parto natural estava a acarretar, os obstetras optaram por não prosseguir com a cesariana. Tal conduta negligente resultou no nascimento da bebé com paralisia cerebral grau 3, que sobreviveu durante, apenas, 15 meses. Após uma queixa-crime contra os médicos envolvidos, que acabou arquivada, foi apresentada queixa-crime contra o Hospital Amadora-Sintra. Foram precisos 13 anos para a visada obter uma sentença condenatória, tendo o Hospital sido condenado a pagar uma indemnização de 144.600 euros, valor que Alexandra ainda não recebeu.
É o caso, também, de Isabel Pestana, que, em 2009, aos 52 anos, ficou permanentemente paralisada do membro inferior esquerdo, na sequência de um erro médico, circunstância que a obrigou a reformar-se por invalidez – auferindo, a este título, 546,86 euros –, passando a depender da ajuda de terceiros para a execução de tarefas quotidiana básicas. Foram necessários mais de seis anos até o Supremo Tribunal de Justiça condenar o British Hospital a pagar uma indemnização de 95 mil euros à visada.
A primeira questão a enfrentar é a dificuldade de prova nos casos de erro médico, que resultou no arquivamento de mais de 90% dos processos de inquérito abertos em 2017 e 2018.
A prova em processos cuja matéria controvertida envolva erro médico é feita, essencialmente, mediante prova pericial. Ora, desde logo, a obtenção de perícias médicas pela parte interessada, não raras vezes, demora anos. Uma vez obtida, o problema coloca-se ao nível da apreciação da prova, uma vez que, não obstante o facto de a mesma estar, naturalmente, sujeita ao princípio do contraditório, certo é que o Ministério Público, os juízes e as próprias partes não estão, evidentemente, aptas a realizar uma avaliação minuciosa do teor dos pareceres médicos, por desconhecimento dos conceitos técnicos.
Por isto, deveria ser asseverada uma assessoria técnica rigorosa em matéria de apreciação de prova, garantindo o esclarecimento cabal de todas as partes intervenientes no processo.
A verdade é que a ignorância face a tais conceitos de ordem técnica resulta, inevitavelmente, numa notória desvantagem das vítimas relativamente à classe médica. Facilmente se infere que, a priori, a defesa da classe médica é substancialmente facilitada e o paciente, frequentemente, é vítima do erro stricto sensu e do desconhecimento que lhe sucede.
Urge, consequentemente, a adoção de medidas que, por um lado, incrementem o melhoramento do Serviço Nacional de Saúde, reduzindo o potencial para a ocorrência de erros médicos, e, por outro lado, que, na infeliz hipótese de os mesmos ocorrerem, asseverem um processo de inquérito rigoroso, imparcial, célere e justo.
Acresce que, conforme supra referido, é absolutamente fundamental garantir assessoria técnica que permita quer à acusação, quer ao próprio decisor, a compreensão do alcance da prova pericial, bem como assegurar a imparcialidade na emissão de pareceres. É consabido que, na maioria dos casos, o tribunal aprecia a causa partindo do pressuposto da absoluta neutralidade dos relatórios médicos. Ora, se não for garantido aos intervenientes processuais informação suficientemente esclarecedora que permita apreciar quer o teor da prova, quer o adequado exercício o princípio do contraditório, estaremos, de forma clara, a condenar, duplamente, a vítima à injustiça.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico