O prejuízo do IVA na ciência portuguesa

Em Portugal o IVA da ciência é de 23%. Em muitas instituições na Alemanha, Espanha e França é zero. É altura de combater esta injustiça.

É notório, e notável, o caminho percorrido nas últimas décadas pela ciência portuguesa. Cresceu o investimento: de uns míseros 0,27% do PIB, em 1982, passámos para 1,36% em 2018 (valor previsto); temos uma comunidade de cientistas fortemente internacionalizada e orientada para o futuro, muitos dos quais são jovens; tornámo-nos competitivos a nível internacional, disputando – e vencendo muitas vezes – com os melhores do mundo o financiamento de instituições como a Fundação Howard Hughes, a Bill e Melinda Gates e as já famosas “bolsas milionárias”, atribuídas pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC, do inglês European Research Council) ou o mais recente financiamento atribuído pelo Concelho Europeu de Inovação (FET-Open). Alguns dos nossos cientistas são já referência em áreas como a astronomia, a regeneração de tecidos, a malária e por isso procuram-nos cientistas de todo o mundo, que mais do que sol ou a boa comida, seguem líderes de referência na sua área.

Apesar de todas estas “coroas de glória”, o caminho faz-se caminhando. E ainda há muita estrada para andar para que seja atingido em Portugal o investimento total em ciência e desenvolvimento de 3% do PIB até 2030, meta estipulada pelo Governo português em convergência com a União Europeia. Na Alemanha, por exemplo, este valor é já expectável que se situe acima dos 3% para 2018 e a média dos países da UE situa-se atualmente nos 2%.

Ainda é frágil o nosso jovem sistema nacional de ciência e tecnologia, demasiado exposto aos ciclos políticos, sujeito a uma enorme e inaceitável imprevisibilidade nos concursos para financiamento. Mas para além destes handicaps, a ciência portuguesa enfrenta ainda mais uma extraordinária desvantagem, crónica, quando comparada com os nossos parceiros europeus: todos os institutos de investigação pagam 23% a mais pelos bens e serviços necessários para os seus projetos científicos. Ao contrário do que se passa noutros países da UE, como é o caso da Alemanha, França, Espanha, Reino Unido, em que regimes de isenção ou reembolso eliminam o IVA da atividade de investigação sem fins lucrativos, em Portugal a ciência é tributada como uma atividade comercial, sujeita ao último escalão da tabela.

Ora vejamos um exemplo concreto: num projeto com financiamento do ERC pretende-se descobrir os mecanismos moleculares que regulam a formação de novos vasos sanguíneos, com vista ao desenvolvimento de novas terapias para doenças vasculares, como é o caso dos aneurismas, retinopatia diabética e malformação arteriovenosa. Este projeto teve um financiamento aproximado de 1,65 milhões de euros para um período de cinco anos. Neste valor, além dos salários da equipa de investigação e todos os consumíveis e equipamentos científicos necessários para a realização das experiências, há uma fatia considerável de 170 mil euros, que corresponde ao valor gasto em IVA.

Se a mesma equipa de investigação estivesse sediada na Alemanha, estes 170 mil euros poderiam ser gastos em mais material para a investigação. Isto porque na locomotiva da Europa, como em quase todos os restantes países europeus, se assume que a investigação científica, que visa exclusivamente produzir conhecimento, é um bem de primeira necessidade, logo deve estar dispensada de um imposto sobre o consumo. Em Portugal, pelo contrário, é equiparada a um bem de luxo, estando a recuperação do IVA vedada à maior parte das instituições de investigação – tal só seria possível, de forma significativa, apenas se a componente comercial do instituto em questão fosse relevante. Ora esta não corresponde de todo à realidade portuguesa.

O que aqui propomos é que se tomem medidas políticas, corajosas, justas que aproximem os cientistas a trabalhar em Portugal dos seus pares a trabalhar noutros países europeus. Por exemplo, através de uma exceção fiscal atribuída ao nível das instituições e correspondente atividade científica. Depois de pagar o IVA, caberia à instituição pedir o respetivo reembolso, fazendo prova à autoridade tributária de que determinado produto se destina exclusivamente a fins científicos. Ou seja, a isenção, ou não, do IVA estará refém da utilização que o bem tiver – um computador comprado para um determinado projeto científico estaria isento de IVA, um computador adquirido para o departamento de contabilidade continuaria a pagar o IVA que lhe corresponde.

Acreditamos que os progressos científicos observados nas últimas décadas em Portugal foram acompanhados de um diálogo crescente com a sociedade em geral. Os cidadãos valorizam significativamente a ciência, especialmente quando pensam de como a aplicação do conhecimento científico ajuda a satisfazer muitas das necessidades humanas básicas e a melhorar os padrões de vida. Sem dúvida que se pensarmos no que o ser humano foi capaz desde a descoberta do fogo até às mais incríveis e diversas descobertas no último século, como a penicilina entre muitas outras, temos a noção de que a ciência moldou o mundo e a humanidade. É ponto assente que sem investimento na ciência não seremos capazes, como sociedade, de enfrentar os grandes desafios que temos pela frente como a crise energética, novos e melhores tratamentos para o cancro e o combate às alterações climáticas. A história já se encarregou de nos fazer esta demonstração. Agora veremos se a nossa classe política está à altura do seu tempo.

Cientista, diretora executiva do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (Lisboa)

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