Atleta e aventureiro: cruzar a N2 com uma causa
Desta vez, é em cima de uma bicicleta, em contra-relógio, que João Paulo Félix vai percorrer a mais longa estrada nacional. Pelo desafio, sim, mas solidário também – com a Associação de Doentes com Lúpus.
Poderia dizer-se que à terceira é de vez, mas para João Paulo Félix três é apenas um número mais na relação de “sonho” com a Estrada Nacional 2, a EN2, a N2. Se a primeira vez que percorreu a mais mítica estrada portuguesa – ou não fosse a única a rasgar o país de Norte a Sul – foi o “concretizar de um sonho”, cada regresso é um sonho renovado – “cruzar o país é uma sensação incrível”, descreve, “vemos o país real, o país ainda não mexido”. E alimentado por cada desafio a que se impõe, à laia das aventuras que persegue desde criança. Nesta que se inicia a 11 de Junho, vai rolar em bicicleta, como na primeira vez; mas desta feita será em modo de contra-relógio que vai unir Chaves a Faro. Quase 740 quilómetros e uma causa: João Paulo vai pedalar pela Associação de Doentes com Lúpus.
Todas as provas em que João Paulo participa este ano terão esta bandeira – “corro por causas”. E não serão poucas, embora nem todas tenham este nível de exigência (e simbolismo). João Paulo quer fazer, claro, o menor tempo possível – esperar terminar o percurso em 72 horas e os cálculos são simples: o objectivo intermédio é fazer 250 quilómetros a cada 24 horas. Em autonomia total. “Vou conciliando esforço com paragens, para beber, comer”, explica, “se estiver mesmo exausto terei de dormir um pouco”. E dar também descanso à sua Brompton dobrável de roda 16, uma bicicleta “robusta, apesar de pequenina, confortável e muito fiável”. “Num desafio destes é importante confiar na bicicleta”, afirma.
E no dia-a-dia também. Foi há quase seis anos que incorporou a bicicleta no seu quotidiano; foi muito fácil, diz, porque adora o sentimento de liberdade, gosta do silêncio. E andar de bicicleta, explica, é “excelente para prevenir o stress” (“dá-me tranquilidade”), além de ser “um meio de transporte não poluente”. Tem duas, cada qual com o seu uso específico: uma com um conceito mais urbano e outra “para todo o tipo de utilização”.
Uma ou outra viaja quase sempre com ele. E não são poucas as viagens que faz. João Paulo é sociólogo (na área de crianças em situação de maus-tratos) e trabalha sobretudo no Norte do país, de cidade em cidade, dando formações e fazendo supervisão técnica de equipas. Quando conversámos, ia sair para Lisboa, depois seguiria para Braga, Joane, Oliveira de Azeméis, Viseu... Companhias constantes nesse rodopio são um par de sapatilhas e calções: os seus finais de dias são sempre para treinar a corrida. É o seu “grande amor”. E as suas grandes aventuras – vejam-se algumas: Porto-Lisboa, da foz do Douro à do Tejo (360km, seis etapas em autonomia); volta ao Ribatejo (328km em 70h30); Tróia-Sagres (224km, quatro etapas, em autonomia). E o “grande” desafio – voltamos à N2. “Corri 739,26 km em Agosto de 2017. Foram 12 ultramaratonas mais duas etapas mais pequenas” – uma média de 52km por dia em autonomia.
“Alimento-me destes desafios”, confessa, “está-me no sangue”. “Talvez sejam os genes aventureiros dos portugueses. Ando sempre à aventura, a buscar coisas, a tentar inspirar.” Faz parte de vários grupos desportivos e sociedades recreativas, pratica laser run (corrida e tiro laser, parte do pentatlo moderno) e não põe de parte fazer provas de duatlo. Quando era criança, queria sempre “fazer caminhadas mais longas, ir de bicicleta mais longe, atravessar rios”. Aos 17 anos viveu a sua primeira grande aventura, quando decidiu conhecer o país. “Passei pelas Berlengas e andei pelo Minho.” Quando chegou a Vilar de Mouros, decidiu regressar a casa, em Várzea Fresca (Foros de Salvaterra, Salvaterra de Magos), de bicicleta. Comprou uma bicicleta que um homem tinha na arrecadação por três mil escudos (15 euros). Andou quase todo o dia a empurrar a bicicleta nas subidas, com uma enorme mochila às costas e quando, finalmente, no cimo de uma serra, se monta na bicicleta não foi longe. Rebentaram os dois pneus, “estavam ressequidos, eram velhos”. Na aldeia seguinte, vendeu a bicicleta a um homem num café (2500 escudos) e apanhou boleia para Braga.
Agora, é tudo mais programado. A N2, por exemplo, já não lhe esconde os segredos – em 2016, também de bicicleta, estreou-se na sua travessia; regressou no ano seguinte a correr – e por isso sabe o que o espera. Até Vila de Rei (o centro geodésico de Portugal) “é complicado”, com “troços muito difíceis” (como os sete quilómetros entre Vila Real e Peso da Régua, em que o declive é tal que terá de ir a travar), em estradas ‘fechadas’ e piso terrível”; depois vêm 300km ‘planos” até o Caldeirão se erguer em novas dificuldades. A rotina diária intensifica-se e passa a ser treino – quando corre, as distâncias são mais longas (“importante para o ciclismo”), a bicicleta sobe mais serras em modo BTT.
João Paulo diz que a sua vida é 50% de profissão e 50% de aventura e cada uma contamina a outra. Se vai, por exemplo, a Braga em trabalho, aproveita para ficar dois dias no Gerês em aventuras; quando se lança em aventuras “oficiais” (e já são 4108km acumulados), vai em missões solidárias, chamemos-lhes assim. Desde há três anos, dedica cada ano a uma causa: em 2018 tentou despertar consciências para o autismo-Asperger e em 2017 para a esclerose múltipla. “Estou sempre disponível a dar a cara por organizações”, admite, “há trabalhos que devem ser mais divulgados na sociedade civil e o desporto pode ajudar, não é um mundo isolado.”
Quando João Paulo percorreu a N2 a correr, terá tido a companhia de cerca de cem pessoas, calcula, a maioria desconhecidos, que se lhe foram juntando em troços do percurso. Neste regresso à N2, com a camisola do lúpus, espera que a ele se juntem mais uns “amigos” também. Se não, haverá sempre uma próxima. João Paulo não se cansa de contar os quilómetros na N2 e antes do final do ano a ela voltará outra vez – e ao Douro, ao Alentejo, à serra do Caldeirão, as suas regiões preferidas.