Vamos lá ter uma conversa séria sobre residência alternada
Defendamos as crianças, rejeitando a presunção jurídica em prol da residência alternada.
Desde que foi apresentada na Assembleia da República uma petição em prol da presunção jurídica da residência alternada, muito se tem debatido sobre este tema.
Se por um lado temos aqueles que entendem que a lei actualmente em vigor deveria ser alterada, no sentido de passar a consagrar uma presunção jurídica de residência alternada, do outro estão aqueles que entendem que uma tal alteração legislativa é absolutamente contrária aos superiores interesses das crianças.
Antes de expor os meus argumentos quanto a este tema, gostaria de deixar claro que a minha opinião funda-se única e exclusivamente quer no estudo que já dediquei a este tema, quer na minha experiência prática, enquanto advogada que exerce a sua actividade na área do Direito da Família.
O artigo 1906.º do Código Civil dispõe, actualmente, o seguinte:
1 - As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho são exercidas em comum por ambos os progenitores nos termos que vigoravam na constância do matrimónio, salvo nos casos de urgência manifesta, em que qualquer dos progenitores pode agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível. (…) 5 - O tribunal determinará a residência do filho e os direitos de visita de acordo com o interesse deste, tendo em atenção todas as circunstâncias relevantes, designadamente o eventual acordo dos pais e a disponibilidade manifestada por cada um deles para promover relações habituais do filho com o outro. (…) 7 - O tribunal decidirá sempre de harmonia com o interesse do menor, incluindo o de manter uma relação de grande proximidade com os dois progenitores, promovendo e aceitando acordos ou tomando decisões que favoreçam amplas oportunidades de contacto com ambos e de partilha de responsabilidades entre eles”.
Resulta, portanto, claro da letra da lei que a única regra actualmente em vigor é a do exercício conjunto das responsabilidades parentais. Quer isto dizer que actualmente o poder para tomar decisões quanto às questões de particular importância da vida dos filhos será atribuído a ambos os progenitores, excepto quando isso mesmo se revelar contrário aos interesses das crianças (artigo 1906.º, n.º 2, do Código Civil), sendo que a lei faz uma ressalva, considerando que a fixação do exercício conjunto das responsabilidades parentais será sempre contrária aos interesses da criança nos casos de violência doméstica, ou outras formas de violência em contexto familiar (artigo 1906.º-A do Código Civil).
Contudo, apesar de a lei consagrar a ressalva no artigo 1906.º-A, é pouco comum os tribunais atribuírem o exercício das responsabilidades parentais a apenas um dos progenitores, mesmo nos casos em que, paralelo ao processo de regulação das responsabilidades parentais, corre um processo-crime por violência doméstica, ou por qualquer outra forma de violência em contexto familiar, o que deverá constituir um alerta importante para os perigos de se estabelecerem regimes regra ou presunções jurídicas neste tipo de matérias.
Quanto à determinação de com quem deverá a criança ficar a residir, verificamos que o legislador não estabeleceu qualquer regra, ou seja, os juízes são livres de fixar a residência das crianças junto de apenas um dos progenitores (residência única), ou junto de ambos os progenitores (residência alternada), em conformidade com aquele que for o interesse daquela criança em concreto, podendo, portanto, a residência alternada ser aplicada à luz da redação actual do artigo 1906.º do Código Civil.
Tendo em consideração o supra exposto, torna-se então claro que uma alteração legislativa que venha fixar uma presunção jurídica (ou regra) de residência alternada é totalmente desnecessária, uma vez que a residência partilhada já é aplicada quando os progenitores o desejam, ou quando os tribunais entendem que esse é o modelo que de melhor forma permite salvaguardar o interesse das crianças.
Contra este argumento, vêm os defensores da presunção jurídica referir que “apesar de a lei não impor qualquer regra, a verdade é que os tribunais revelam uma preferência pela mãe, fixando sempre a residência junto desta, em detrimento dos pais”.
Ora, este contra-argumento é totalmente improcedente.
Em primeiro lugar, é falso que os nossos tribunais ainda se guiem por uma preferência maternal. A regra hoje em dia é ser fixada a residência alternada. Raríssimos são os casos em que a residência das crianças é fixada junto de apenas um dos progenitores, quando o outro progenitor deseja a residência alternada.
E mais: nos raros casos em que os tribunais decidem fixar a residência das crianças junto de apenas um dos progenitores (contra a vontade do outro), revelam não uma preferência maternal, mas sim uma preferência por aquele que é o principal cuidador. Se o principal cuidador for a mãe, fixam a residência das crianças junto da mãe. Se o principal cuidador for o pai, a residência das crianças é fixada junto do pai.
Por outro lado, importa ter presente o seguinte: a lei só é necessária para aqueles casos em que existe um conflito acentuado entre os progenitores.
Ora, a grande maioria dos processos de divórcio ou separação em que se torna necessário regular as responsabilidades parentais das crianças, são por mútuo consentimento.
Isto é, a lei só releva para aqueles casos em que o nível de conflito entre os progenitores é de tal forma elevado, que se torna impossível obter qualquer tipo de acordo.
Para esses casos o estabelecimento de uma regra ou presunção jurídica de residência alternada não só não é necessária (porque a lei já permite a sua aplicação, se o tribunal entender que é o modelo que de melhor forma permite realizar o superior interesse do menor), como pode ser altamente prejudicial para as crianças.
Nos processos de regulação das responsabilidades parentais as decisões que são tomadas pelos juízes devem ser casuísticas. Isto é, deve-se olhar para cada criança em concreto, sendo certo que não existem duas crianças iguais, nem dois casos (ou duas famílias) com características absolutamente iguais.
Assim sendo, é contraproducente estabelecer-se ou fixar-se regimes regra (ou presunções legais), uma vez que as leis nestas matérias pretendem-se tão “maleáveis” quanto possível ao caso concreto, de modo a ser efectivamente possível garantir que o superior interesse de cada criança é respeitado.
Por outro lado, o estabelecimento de um regime regra ou presunção jurídica de residência alternada irá permitir aos juízes “fugir” à decisão de um caso difícil. A partir do momento em que é consagrada uma regra ou presunção, os juízes só não a aplicarão quando existirem razões ponderosas para a sua não-aplicação. Ou seja, se for consagrada uma presunção jurídica a favor da residência alternada, o juiz apenas não a poderá aplicar quando o progenitor que não deseja a guarda partilhada conseguir demonstrar e provar que a residência alternada não é o melhor para a criança.
Ora, tal prova negativa não só será extremamente difícil, como esta inversão de raciocínio é completamente contrária ao princípio do superior interesse da criança, pois em vez promover uma análise casuísta, bem como a aplicação do regime que melhor se adequada àquela criança em concreto, irá contribuir para a aplicação estandardizada de um modelo de residência.
Por outro lado, esta inversão de raciocínio irá contribuir enormemente para um aumento da conflitualidade nos processos de regulação das responsabilidades parentais.
Enquanto ao abrigo da lei hoje em vigor o progenitor que quer ver aplicada a residência alternada expõe os factores positivos a favor de uma maior convivência da criança com ambos os progenitores (p. exemplo, porque o filho tem uma ligação emocional muito forte com ambos, porque ambos cuidam igualmente bem da criança, etc.), no caso de ser consagrada uma regra (ou presunção jurídica) de residência alternada, o progenitor que não a desejar será forçado a expor as razões pelas quais uma maior convivência com ambos os progenitores poderá ser nefasta para a criança (p. exemplo, informando o tribunal que o outro progenitor não é um bom cuidador, que nunca esteve presente na vida da criança, que não tem tempo para estar com a criança, que a criança não tem com ele uma relação emocional forte, etc.).
Esta inversão irá necessariamente trazer um maior grau de conflito às regulações das responsabilidades parentais, colocando a criança no centro desse conflito, deturpando assim a racio legis deste tipo de processos: diminuir o conflito entre os progenitores e proteger a criança.
Por fim, o principal argumento contra o estabelecimento de uma presunção (ou regra) de residência alternada, prende-se, por um lado, com o facto de existirem falhas gravíssimas na articulação entre os tribunais de família e menores e os tribunais criminais – com os tribunais de família e menores a revelarem uma clara tendência para separar as questões criminais das familiares, em violação do artigo 31.º da Convenção de Istambul, que foi ratificada por Portugal – e, por outro, com o facto de a prova nos processos-crime de violência doméstica e/ou de outras formas de violência em contexto familiar ser extremamente difícil, sendo essa uma das principais razões que leva a que a maioria deste tipo de processos termine num arquivamento ou absolvição.
Contudo, a circunstância de não ser possível provar, em sede de processo-crime, que determinados factos, que constituem um determinado tipo de crime, foram cometidos, não quer necessariamente dizer que esses mesmos factos não tenham sido praticados.
Ora, como referido supra, o estabelecimento de uma presunção jurídica (ou regra) a favor da residência alternada irá conduzir os juízes à aplicação desse modelo de guarda, a menos que existam elementos ponderosos que o desaconselhem. Havendo um arquivamento ou absolvição em sede de processo-crime, dificilmente o juiz de família e menores terá fundamentos para afastar a presunção (ou regime regra) de residência alternada.
Se já nos dias de hoje temos juízes que decidem aplicar a residência alternada mesmo nos casos em que os progenitores são condenados (normalmente, como sabemos, a penas suspensas) pelo crime de violência doméstica, ou em que esta é evidente (veja-se o caso da pequena Lara, que acabou por ser encontrada morta, na mala de um carro, estrangulada pelo próprio pai), estas situações serão agravadas se este modelo de guarda for consagrado como presunção ou regime regra.
A verdade é que nos processos de regulação das responsabilidades parentais, quando existam suspeitas da pratica de crimes como violência doméstica ou abuso sexual por parte de um dos progenitores, não se pode fazer tábua rasa e ignorar tais suspeitas, muito menos se devendo atribuir a guarda das crianças ao progenitor suspeito, precisamente porque os princípios que regem os processos-crime e os processos tutelares cíveis são totalmente distintos. Enquanto nos primeiros prevalece o princípio da presunção de inocência e do in dubio, pro reo (a dúvida aproveita ao arguido), nos processos tutelares cíveis deve prevalecer o princípio do in dubio, pro filius (na dúvida, proteja-se a criança).
Por último, importa não esquecer que Portugal tem vindo a ser por diversas vezes condenado por não transpor para a lei interna diversas diretivas comunitárias.
O próprio GREVIO (Relatório do Grupo de Peritos independentes sobre a situação de Portugal quanto à implementação da Convenção de Istambul) alerta para a necessidade de Portugal proceder a diversas alterações legislativas urgentes e relevantes, alterações legislativas essas que nada têm a ver (antes pelo contrário) com o estabelecimento de uma presunção jurídica de residência alternada.
Tendo em consideração o supra exposto, termino com um apelo dirigido aos senhores deputados da Assembleia da República: promovam as alterações legislativas que realmente importam e que poderão ter um impacto significativo na diminuição do número de vítimas de violência doméstica em Portugal e deixem de parte alterações legislativas que em nada contribuem para a salvaguarda dos direitos e interesses das crianças do nosso país. Não nos esqueçamos que a vida e o bem-estar das crianças é bem mais importante que alterações legislativas inúteis e politicamente correctas, que apenas visam agradar a certo tipo de eleitorado.
Como um dia disse Marian Wright Edelman, “if we don't stand up for children, then we don't stand for much”. Defendamos então as crianças, rejeitando a presunção jurídica em prol da residência alternada.