O que é restaurar um filme? A Guerra das Estrelas e Os Verdes Anos respondem
Os Encontros do ANIM, que na semana passada tiveram em Bucelas a sua segunda edição, abordaram questões de autoria e fidelidade suscitadas pelos processos de restauro cinematográfico.
O que significa “restaurar” um filme à sua forma original – é devolver o filme ao momento em que foi visto em público pela primeira vez, ou tentar fazer no presente o filme que não se conseguiu fazer no passado? E o que é que George Lucas e Fritz Lang têm a ver com isso?
As possibilidades e os limites do restauro foram um dos temas recorrentes da segunda edição dos Encontros no ANIM, com que a Cinemateca Portuguesa quis voltar a fazer um “ponto da situação” dos trabalhos actualmente em curso sobre a memória do cinema português e a sua preservação, quer entre a comunidade académica, quer no próprio Arquivo Nacional da Imagem em Movimento (ANIM), em Bucelas. O dia e meio de painéis, apresentações e debates que teve lugar a 21 e 22 de Maio iniciou-se precisamente com a explicação pelo director do ANIM, Tiago Baptista, do trabalho envolvido na preparação de cópias digitais para permitir a circulação alargada de filmes que de outro modo não sairiam das prateleiras, preservando o mais fielmente possível, em termos de cor, grão, contraste, definição e outros elementos de imagem e som, as qualidades dos originais. É um processo muito mais complicado do que parece – bastou ver a pequena apresentação feita por Franco Bosco, da Cinemateca, e Fernanda Gurgel e Tiago Borrões, da Cineric (parceira tecnológica da instituição no processo de digitalização) sobre a recuperação dos filmes de António Reis e Margarida Cordeiro, comparando o estado da obra “antes e depois”, para perceber o que a usura do tempo pode fazer a uma cópia e a exigência de uma operação de restauro.
Mas – e voltando ao princípio – o que é que George Lucas e Fritz Lang têm a ver com isto? Simples: no caso do cineasta americano, as possibilidades abertas pelo digital permitiram-lhe fazer correcções de efeitos especiais em A Guerra das Estrelas, O Império Contra-Ataca e O Regresso de Jedi. Ou seja, fazer o que não era tecnicamente possível fazer em 1977, 1980 e 1983, respectivamente. O resultado é que os três filmes já não existem nas versões que se estrearam à época em sala – o realizador retirou de circulação todas as cópias preexistentes e só as versões revistas sobrevivem. No caso de Fritz Lang, o Metrópolis original, tal como foi estreado em 1927, é impossível de recuperar; mas, à medida que mais cópias com material julgado perdido têm sido descobertas, aquele clássico do cinema mudo tem sido alvo de uma multiplicidade de “restauros” e, no labirinto que essa profusão criou, já não sabemos muito bem qual será a versão mais próxima do original – ou se todos eles não serão, no fundo, filmes diferentes.
A mesma questão se colocou à investigadora Elena Cordero Hoyo no decurso do seu work-in-progress sobre Os Olhos da Alma, de Virgínia de Castro e Almeida. Este filme, que a escritora escreveu e produziu em 1923, existe nos arquivos em duas versões, uma francesa e outra portuguesa, com montagens significativamente diferentes. Qual delas surgiu primeiro? Qual é o “original”? Aliás: pode sequer falar-se de um “original” num caso em que, segundo a escassa documentação existente, o filme foi “moldado” em função do país onde iria ser exibido? Qual será, então, a versão mais próxima dos desejos da sua produtora, assumindo que as duas versões equivalem na prática a filmes “diferentes”?
A interrogação prolongou-se na comunicação de Ricardo Vieira Lisboa a propósito dos recentes restauros de Mudar de Vida e Os Verdes Anos, de Paulo Rocha (1935-2012) – iniciados ainda em vida do seu realizador, e supervisionados e terminados por Pedro Costa, escolhido por Rocha como “executor” das suas vontades artísticas. Para lá das discussões puramente técnicas, surgem aqui questões delicadas sobre fidelidade ao original que se cruzam com a própria ideia de “autoria”: a tentação do cineasta foi a de corrigir aquilo que não pôde ser feito na altura (por falta de meios ou de tecnologia), reivindicando o direito, enquanto autor, à última palavra sobre a forma definitiva do seu filme, mesmo que à custa de alterações num “original” (que, entretanto, deixa de existir enquanto tal para passar a constituir apenas uma de múltiplas versões).
Daí a pergunta: o que significa, verdadeiramente, restaurar um filme? Para a qual acaba por não existir uma única resposta, antes todo um leque de possibilidades, dependentes de questões circunstanciais impossíveis de sistematizar. Mas outros temas estiveram em cima da mesa nuns encontros em que se falou também da sempre fascinante história do cinema militante pós-25 de Abril (Raquel Morais falou dos filmes do Grupo Zero como uma tentativa de fazer cinema “do momento” “a frio”, reflectindo no decurso do processo; Paulo Cunha constatou a escassíssima circulação interna de As Armas e o Povo, desfazendo o mito de ser este o filme emblemático dessa produção).
Houve comunicações sobre Noémia Delgado (1933-2016), cineasta que, apesar dos seus muitos projectos, acabou por ser de um só filme, Máscaras (Manuela Penafria); sobre a influência do Auto da Floripes realizado pelo Cineclube do Porto em 1959 no Acto da Primavera de Manoel de Oliveira (Pedro Mota Tavares); sobre as partituras do folclorista Armando Leça para o cinema mudo português (Bárbara Carvalho e Manuel Deniz Silva); e sobre a sempre delicada relação que mantemos com as imagens do arquivo colonial (com apresentações a cargo de Inês Ponte e Ana Balona de Oliveira). E mostraram-se também imagens do restauro actualmente em curso de Francisca, de Manoel de Oliveira. A memória do cinema português está, por isso, de boa saúde e recomenda-se.