O passado como nunca o vimos antes
Os Encontros no ANIM reuniram investigadores, académicos e interessados nas instalações do arquivo da Cinemateca, em Bucelas. Por entre cem mil materiais históricos, mesmo ao lado do último laboratório de tiragem de película na Península Ibérica, fizeram-se curto-circuitos entre o passado e o presente e mostraram-se restauros em curso.
No princípio, eram as bobinas, altamente inflamáveis, do nitrato. Já o dizia Bill Morrison em Dawson City: Frozen Time (2016): “o filme nasceu de um explosivo”. Foi para impedir essas explosões, para permitir às bobinas sobreviver, para se preservar o que nelas está, que se criou a ideia dos arquivos. E foi por isso que a Cinemateca Portuguesa construiu em 1996, nos 18 hectares de uma quinta de Bucelas, quatro enormes cofres blindados (que já passaram entretanto a nove), mantidos escrupulosamente em condições ideais de temperatura e humidade. Neles estão milhares de materiais meticulosamente referenciados: mais de um século de história do cinema (português e não só). A mesma história que, ao longo dos últimos anos, tem vindo a ser vasculhada pelos académicos e estudiosos que a Cinemateca acolheu nas instalações do ANIM - Arquivo Nacional das Imagens em Movimento, em Bucelas, e que ali regressaram em meados de Maio para a primeira edição dos Encontros no ANIM. Uma celebração da importância dos arquivos para a preservação da memória da produção portuguesa, abrangendo o nitrato e o filme caseiro de 16mm, os DCP digitais e os telecinemas da RTP, o jornal de actualidades e a animação e o filme industrial.
Mais de cem mil materiais identificados repousam no complexo de Bucelas, dos quais 70 mil correspondem a materiais fílmicos, entre os quais 20 mil títulos de produção portuguesa. O público não terá forçosamente noção disso – nem terá de o ter – mas o papel do ANIM é, desde a sua inauguração em 1996, crucial na recuperação e preservação desta memória, pacientemente identificada nas dezenas de prateleiras dos cofres, esperando apenas que um investigador se interesse pelos seus segredos. Como o director do ANIM, Tiago Baptista, ele próprio investigador, nos dizia há alguns meses, “trata-se de ver o que as imagens captaram independentemente da intenção de quem as filmou, e utilizá-las em contextos que nos dizem como é que funcionou o cinema.”
Ligar filmes, eras, países
A história do cinema faz-se, em grande parte, desses “tropeções”, peculiares e por vezes acidentais, criando ligações entre filmes, eras, países. Como a “descoberta” com que o ANIM presenteou os investigadores que assistiram à primeira edição dos Encontros: a projecção comentada por Teresa Castro, professora associada de Estudos Fílmicos na Sorbonne, de Voyage en Angola (1929). Realizado por Marcel Borle, cineasta amador sem carreira prévia conhecida, este registo de um “safari científico” realizado por uma equipa suíça propõe um olhar sobre a Angola colonial que nenhum outro filme da época – e certamente nenhum outro filme português da época – soube ter. É um objecto surpreendente de invenção e modernidade artística (Teresa Castro apontou a influência assumida de Abel Gance no trabalho de Borle), diário de viagem fascinado por usos e costumes exóticos, que manifesta uma curiosidade genuína sobre o outro para lá da pura condescendência colonialista presente em tantos filmes contemporâneos.
Voyage en Angola está agora a ser restaurado no laboratório fotoquímico da Cinemateca para o Museu de Etnografia de Neuchâtel, a partir de materiais da Cinemateca Suíça, revelando os laços de forte cumplicidade do ANIM com a rede mundial de cinematecas de que faz parte desde 1956 – cumplicidade reforçada pelas capacidades técnicas das instalações. No entanto, o laboratório do ANIM – o último de restauro e tiragem fotoquímica ainda em actividade na Península Ibérica – está, nas palavras de Tiago Baptista, “numa situação precária e pode parar a qualquer momento”, o que dificultaria grandemente a continuação da preservação condigna dos materiais arquivados.
O Pão de Oliveira em versão longa
Mas Voyage en Angola não é o único trabalho em curso; para encerrar o dia, Tiago Baptista apresentou como “surpresa”, perante o entusiasmo da plateia reunida no auditório da instituição, excertos do trabalho ainda em obra sobre a curta-metragem de Manoel de Oliveira O Pão. Encomenda da Federação Nacional da Indústria de Moagem, este contemporâneo de Acto da Primavera e A Caça é conhecido pela “versão curta”, com 25 minutos, que Oliveira remontou em 1964 e que era aliás a sua preferida. Mas vai agora finalmente poder ser reencontrado na “versão longa” original de 1959, com uma hora de duração, que apenas chegou até nós em avançado estado de decomposição. Em comum, o restauro de Voyage en Angola e O Pão têm a confirmação do poder da imagem em movimento para nos fazer ver a vida e a história de outro modo.
Pelos corredores dos arquivos do ANIM vêem-se também máquinas de projecção, paletes de bobinas, arquivos recolhidos ou depositados à espera de identificação e catalogação e em alguns casos de restauro, com um staff (nas palavras de Baptista) reduzido “ao osso”. Mas esse trabalho é recompensado. O trabalho continuado do ANIM sobre a obra de Paulo Rocha levou há pouco uma nova cópia do mítico (e pouco visto) A Ilha dos Amores a Cannes, que se prepara para viajar por todo o país e também por festivais internacionais. O que não faltam são oportunidades – mesmo que, infelizmente, sejam mais reconhecidas internacionalmente do que cá por dentro. Mas, se pensarmos na relação complicada de Portugal com a sua própria memória, venha ela do cinema, da literatura ou da música, não é surpreendente. O importante é que o ANIM exista – e que assim continue.