Frankie, Ahmed e outros rapazes e raparigas de Cannes (com Sintra lá ao fundo)
O norte-americano Ira Sachs, os belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, o romeno Corneliu Porumboiu e a francesa Céline Sciamma entraram na competição.
Vocês vão adorar: o eléctrico, a montanha e o horizonte, a Peninha e a Regaleira, o nevoeiro e as lendas das Praias das Maçãs e das fontes – isto são dois argumentistas em Nova Iorque, Ira Sachs e Maurizio Zacharias, a escrever para um “actor” por quem ficaram fascinados: Sintra, Portugal.
É possível que os intérpretes, vindos dos EUA, da França ou da Irlanda, vejam recortada qualquer coisa da ordem da fragilidade sobre este pedaço de guia turístico, um paraíso tão, mas oh tão típico. Como se o cenário não lhes desse outra alternativa. Alguns são inexperientes – os mais novos, que fazem os “filhos” ou amigos dos filhos de uma família estrangeira que passa um Verão em Portugal. Outros têm entre as suas técnicas a placidez, o abandono e a sabedoria que lhes permite atravessar a duração teatral dos planos e concorrer para a sensação de que tudo o que acontece no ecrã é frágil porque depende do movimento deles; está suspenso pelo desejo deles. É o caso de Isabelle Huppert, Brendan Gleason, Pascal Greggory, Jérémie Rénier, Marisa Tomei ou Greg Kinnear, a matriarca, o marido dela, o ex-marido, o filho, a amiga e o ex-namorado dela, respectivamente.
São três gerações a tentarem reencontrar-se como família, longe da Nova Iorque que lhes fechou os movimentos (mas, como se percebe, é Nova Iorque que continua a olhar para Sintra em Frankie, filme de Ira Sachs, co-produção franco-portuguesa fotografada por Rui Poças, e primeira vez que o realizador de Love is Strange – O Amor é Uma Coisa Estranha está na competição em Cannes).
É esta a família, que foi convocada por uma complicada vedeta de cinema, com a clássica dificuldade em deixar-se amolecer pelo sentimento (Huppert é Frankie). E alguém que tem um plano: está a morrer, quer deixar assuntos fechados.
A inspiração assumidamente rohmeriana de Frankie é muitas vezes ofuscada pelo tal postal e pelo facto de as personagens parecerem estar a dar indicações turísticas. Sinal de que o filme não tem opção para o turismo. Embora aqui e ali – com as personagens de Huppert e Tomei, nomeadamente – ensaie fugas, pelas florestas.
Nesses momentos, o nevoeiro esconde o postal. E, à medida que vai subindo pela montanha de Sintra, Frankie vai-se mesmo elevando. Huppert conduz a sua manada, vai-se tornando mais seráfica (alguém no filme, exagerando, diz que ela é uma Greta Garbo, o que é mentira, obviamente, mas em cima da Serra de Sintra, quando o sol se põe, parece um ícone e lá chamámos à memória, exagerando, é claro, o final da Rainha Cristina). Esse é o final elegíaco de Frankie, e essa passagem do turístico ao mitológico vem complicar a fácil arrumação deste filme. É que, por exemplo, não há um plano no novo de Terrence Malick, A Hidden Life, tão bonito como este.
Entretanto...
Houve, entretanto, no concurso da 72.ª edição, Le Jeune Ahmed, dos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne (vencedores de duas Palmas de Ouro), Portrait de la jeune fille en feu, da francesa Céline Ciamma (que já andara por Cannes, na Quinzena dos Realizadores e na secção Un Certain Regard, mas agora “sobe” à competição), e La Gomera, do romeno Corneliu Porumboiu (já vencedor de uma Câmara de Ouro, prémio para uma primeira obra, em 2006 com 12:08 A Este de Bucareste).
Os Dardenne interceptam a personagem de um jovem de 13 anos envolvido pelos ideais do seu imã e por uma interpretação fanática do Corão. Decide-se por um plano para eliminar a professora, que crê ser impura. Se se ler o que os Dardenne escreveram como nota de intenções deste filme que, segundo eles, quer ter em conta o que é o radicalismo mas não fazer psicologia social sobre ele, parece que estão a escrever sobre Rosetta, a personagem do filme que em 1999 lhes deu a sua primeira Palma de Ouro: como eles escrevem, uma figura imperscrutável que não permite que o filme abrande, imune a qualquer construção dramática por parte dos argumentistas para desviar a sua determinação. Isto, na verdade, valia para Rosetta, personagem interpretada por Emilie Dequenne, que mataria para seguir os seus objectivos e dessa forma determinava a vida do filme. No caso de Le Jeune Ahmed, é sobretudo o filme que “escreve” os seus efeitos sobre o jovem Idir Ben Addj, belga de origem marroquina e de família muçulmana que interpreta a personagem. É uma versão de bolso de Rosetta.
O caso de Poromboiu, com La Gomera, é o de um realizador que passa do micro-realismo, um dos sinais que identificaram uma escola romena, aos arquétipos do film noir. Sobe então uns degraus, abstracção e fantasma cinematográfico, e deixa ficar na textura do filme marcas de grandiloquência, de algum cinismo até a lidar com as personagens e a desembaraçar-se delas.
Céline Sciamma, pelo contrário, é justíssima e subtil no formato “filme de sentimentos”, mas o que teríamos esperado dela, como fez em Tomboy (2011) ou Bando de Raparigas (2014), é que Portrait de la jeune fille en feu, filme de época, retrato de um amor e do desejo feminino, filme sobre o retrato, também, sobre o olhar do pintor sobre o seu modelo e sobre o que o modelo impõe nessa relação, levasse com ele as expectativas – por exemplo o que fizeram antes François Truffaut, Jacques Rivette ou Abdellatif Kechiche – para o seu próprio território. Mas não, é como se o “filme de época” – é o século XVIII – tivesse sido um colete de forças para uma realizadora tão interessada em documentar e intervir sobre o seu tempo. Não seria inédito. Mas isso não apaga o que se forja entre Noémie Berlant e Adèle Haenel, a primeira interpretando uma pintora chamada para fazer o retrato de uma jovem rebelde saída do convento para se casar mas que recusa tanto o marido como a possibilidade de se sentar para o retrato – é Adèle Haenel, que há dez anos é filmada por Sciamma, de quem foi companheira, o que deixa em Portrait de la jeune fille em feu mais do que uma possibilidade afectiva de vertigem.