Agenda para a Década da Ciência Oceânica dá pontapé de saída

Documento será apresentado em 2020 e pretende colmatar as lacunas de conhecimento sobre o oceano. Mas, “se a governação falhar, não há ciência que salve o planeta”, avisa Ricardo Serrão Santos.

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Miguel Madeira/Arquivo

A elaboração da agenda para a Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (2021-2030) teve esta semana a sua primeira grande reunião, em Copenhaga. A agenda deverá ser apresentada em 2020, na 75.ª Assembleia Geral das Nações Unidas, e até lá um grupo de 19 especialistas de 16 países, incluindo o biólogo e o ainda eurodeputado português Ricardo Serrão Santos, vai preparar um programa para colmatar lacunas de conhecimento e enfrentar novos desafios sobre o oceano. “O lema é alinhar o que podemos fazer em conjunto e que não pode ser realizado de forma individual”, resume Ricardo Serrão Santos.

Depois desta grande reunião na Dinamarca, que terminou esta quarta-feira, haverá uma outra em 2020 – “provavelmente em Lisboa”. A agenda para a Década da Ciência Oceânica, cuja elaboração ficou a cargo da Comissão Oceanográfica Intergovernamental (COI) da UNESCO, concentrar-se-á em seis grandes áreas: um oceano limpo; um oceano saudável e resiliente; um oceano previsível; um oceano seguro; um oceano produtivo e explorado de forma sustentável; e um oceano transparente e acessível. “Espera-se que seja um programa mobilizador e que apela à cooperação internacional. A ideia é integrar parcerias e pôr os cientistas e as capacidades científicas de diferentes países a trabalhar em conjunto.”

“A quinta dimensão”

O conhecimento científico será a espinha dorsal da agenda. “Mas a ciência a desenvolver tem como objectivos específicos contribuir para a agenda do desenvolvimento sustentável 2030, nomeadamente o objectivo 14 [proteger a vida marinha]”, explica Ricardo Serrão Santos, que durante 16 anos foi director do Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores e é eurodeputado pelo Partido Socialista desde 2014.

“O plano irá identificar lacunas no conhecimento: dou como exemplo o ambiente meso-pelágico, ou seja, os ecossistemas da coluna de água dos oceanos, que é extremamente rica em biomassa que alimenta os grandes predadores e migradores oceânicos, como os cetáceos, os tubarões, as aves marinhas e grandes tunídeos. Mas o conhecimento sobre o seu funcionamento é tão parco que os cientistas chamam-lhe a ‘quinta dimensão’ (a ‘twilight zone’).”

Quais são então os grandes desafios sobre o oceano? “Se alguns dos desafios do futuro são novos – por exemplo, perceber como as actividades de mineração no oceano profundo irão ter impacto nas pescas, o que vai exigir investigação de fronteira –, outros são mais clássicos, como a manutenção de pescas sustentáveis”, responde Ricardo Serrão Santos.

“A ciência pesqueira mostrou que o conhecimento científico, desde que bem aplicado do ponto de vista político, pode restabelecer a saúde dos mananciais [stocks de pesca]. Isso está a passar-se no Norte Atlântico e mares adjacentes, porque há programas bem estabelecidos de aquisição de dados, conselhos internacionais científicos e um bom progresso na governação.”

Entre os novos desafios está a contribuição crescente dos oceanos para a economia do planeta, através da “economia azul”: “Os oceanos estão a ser chamados para um novo paradigma da alimentação e de produção de energia, por exemplo. Como tal, vai exigir-se mais, o que significa que a ciência deve orientar as opções”, refere ainda.

“Também entram na equação novos elementos que estão a mudar a estrutura e o funcionamento físico, químico e biológico [dos oceanos]. Refiro-me à acidificação, ao aumento de zonas desoxigenadas, às perturbações causadas pelas ondas de calor marinhas, à libertação do chamado carbono azul pela deterioração de habitats costeiros, ao aquecimento progressivo das águas. Estas são as novas grandes ameaças, que vão ter reflexos no funcionamento dos ecossistemas, na biodiversidade, nos recursos. Haverá mais imprevisibilidade e caos nos sistemas.” A investigação pesqueira, por exemplo, terá de ter esses aspectos em conta. “Há mais perguntas do que respostas. Uma delas é como prever a sustentabilidade dos mananciais num oceano em mudança.”

Noutras situações os desafios nem são científicos. “Passam pela ausência de dados, ausência de transparência, ausência de controle e de governação.” Espera-se, por isso, que durante a Década da Ciência Oceânica haja melhorias nos sistemas de observação do oceano e na partilha de dados, em particular nos países em vias de desenvolvimento.

Será ainda um desafio manter uma exploração sustentável do oceano ao mesmo tempo que se procura um mundo mais justo e equitativo. “Se olharmos para diversas zonas costeiras e estuários na Ásia, a acumulação de plásticos tornou-se o rendimento de ‘empreendedores’ que vivem na pobreza. Isto lembra-me o célebre discurso de Indira Gandhi sobre a pobreza, em 1972, em que disse: ‘Como podemos falar para aqueles que vivem em aldeias e favelas sobre manter limpos os oceanos, os rios e o ar, quando suas próprias vidas são contaminadas na fonte?’”

“Sem governação não há ciência que salve o planeta”

Quando olhamos para o estado de saúde do planeta – como o relatado na recente avaliação da biodiversidade global –, o cenário é catastrófico. Mais de um milhão de espécies de plantas e animais (entre os oito milhões que se estima existirem no planeta) corre sérios riscos de extinção, algumas já nas próximas décadas. Que papel pode então ter a ciência aqui? Como pode ser-se optimista?

“A governação é fundamental e exige um esforço global. Os impactos humanos na componente marinho do planeta não se conformam com fronteiras políticas. A ciência deve informar a governação, mas se a governação falhar não há ciência que salve o planeta”, considera Ricardo Serrão Santos, sublinhando que será um esforço de concertação entre governos, cientistas, indústria e a sociedade em geral.

“Por mais optimistas que queiramos ser, a verdade é que as mensagens de quem está em posição privilegiada para observar os progressos do tratado mais importante para o futuro do planeta – o tratado de 2015 sobre as mudanças climáticas – são muito preocupantes. Refiro-me aos contínuos avisos do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres.”

Ainda há dias António Guterres fez um desses avisos: “A vontade política para combater o aquecimento global parece estar a enfraquecer ao mesmo tempo que a situação está a piorar para aqueles que sentem os seus efeitos.”

Mas embora o cenário seja preocupante, Ricardo Serrão Santos recorda que no passado há igualmente exemplos positivos. “Se durante o século XX, o século da grande aceleração, muitas coisas pioraram no planeta, muitos problemas, quando detectados, também foram resolvidos. Lembremos o buraco de ozono. Contra ventos e marés, muitos dos mananciais de peixe do Norte Atlântico recuperaram ou estão em recuperação para níveis sustentáveis. E revertemos o processo de ameaça grave a numerosas espécies de cetáceos.”

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