O elogio da história e dos historiadores, sem esquecer a filosofia, a arte e a cultura
Cabe-nos a defesa destas disciplinas num momento em que estão sob o fogo da extrema-direita e do nacional-populismo.
A extrema-direita, que um pouco por todo o lado triunfa, chega ao governo através de eleições ou recebe apoio em largas franjas das respectivas populações, tem vindo a manifestar a recusa do “outro”, dos emigrantes e dos refugiados, atitudes xenófobas, racistas, homofóbicas e sexistas, através de uma linguagem nacionalista e uma “metodologia” populista. O populismo — lembro — caracteriza-se por dividir o mundo a preto e branco, entre, por um lado, o “povo” (bom), entidade colectiva perfeita e trabalhadora, e, por outro lado, as elites (más), sejam elas culturais, sociais, profissionais e/ou políticas, pois todas seriam corruptas e nada fariam pelo “bem comum”.
O discurso populista considera que o “Povo”, ou os “populares” (seja o que isso seja) teriam toda a sabedoria e experiência de vida, enquanto os outros, das elites, apenas conheceriam “teorias”, aprendidas na universidade e através dos livros, muito longe da prática e da realidade das pessoas “comuns”. Há dias, estive numa sessão, juntamente com outro historiador, em que se abordou a situação das mulheres portuguesas durante a Ditadura. No debate que se seguiu, foi descrita — e bem — a realidade social e educacional portuguesa numa terra miserável do Norte de Portugal, nos anos 40 do século XX. De imediato, alguém da assistência comentou que aquele testemunho é que interessava, pois provinha da experiência de vida e estava próximo da verdade, por contraposição — depreendia-se — às palavras dos historiadores presentes, que não reflectiriam a realidade, mas a interpretariam (de forma errada).
Memória e História
Também tenho vindo a assistir a muitos outros exemplos de desvalorização da História académica, por contraponto à valorização — como se fosse antitética — da memória. Ora, quer o processo historiográfico, quer o memorial são formas diferentes de regresso mental ao passado e da sua narração, mas que se complementam. Se a memória implica o reconhecimento de uma experiência passada por alguém que a viveu e a narra com um máximo de fidelidade, a história, enquanto processo de investigação e interpretação, subentende conhecimento do tema estudado, através de uma aproximação a um máximo de verdade possível, mesmo quando esta seja incómoda aos próprios historiadores.
A memória de uma testemunha (oral ou documental) de um passado recente é fundamental para os historiadores, enquanto fonte que preenche silêncios e esquecimentos dos arquivos ou espaços em branco na documentação. Por exemplo, se não há documentos da própria PIDE/DGS em que se lê que a tortura era aplicada por essa polícia política, esta não deixou de existir como método, testemunhado por inúmeros presos políticos. Mas há também patologias da memória. Como assinalou o filósofo Paul Ricoeur, contam-se, entre estas, tanto a míngua como o excesso de memória, tanto a boa como a má memória, a saudável como a traumática.
Destrinçar entre estes vários tipos de memória e procurar a verdade histórica e factual — sempre relativa — pode contribuir para o estabelecimento de uma “boa”, “justa” e “feliz” memória comum, sem veleidades de hegemonia. Ricoeur afirmou que esta a “boa” memória fica “de reserva”, pronta a recorrermos a ela, sem que implique quer o esquecimento — este também necessário —, quer o eterno regresso ao passado que elimina a acção no presente.
Os historiadores exercem também a sua capacidade de empatia, que não é o mesmo que simpatia, e que tanto permite percepcionar os terríveis motivos dos perpetradores (carrascos), como a acção e sofrimento das suas vítimas ao longo da história. De certo modo, os historiadores são “representantes” (Ricoeur) dos homens e das mulheres de um passado que terminou, mas que sabemos que esteve então presente, dando-lhes a voz que já não têm. E fazem-no através do conhecimento contextual, esforçando-se para que a sua própria subjectividade, a sua ética e ideologia não interfiram com a verdade que se propõem interpretar.
Com recurso a um trabalho longo de imaginação, interpretação e comparação, o processo historiográfico desenvolve-se segundo várias etapas. Após a fase do arquivo, de procura de documentação e testemunhos, segue-se a de ordenação, compreensão e interpretação e, finalmente, a importante fase da narração escrita. É claro que os historiadores não são melhores — nem piores — do que outros profissionais e que há, entre eles, “bons e maus” profissionais. A história também não serve para julgar, criminalizar ou absolver, à maneira de um juiz, mas contribui, pela interpretação das fontes, para compreender o que se passou. Também não é através da História que, por via desviada, se faz “política”, retorcendo o passado para que se adapte a interesses actuais próprios.
Os historiadores conhecem também o peso do contexto, de indivíduos específicos, bem como as diversas conjunções de factores que modelam cada período, acontecimento e/ou acção humana. E que, por isso, a história não se repete. Ultimamente, a situação mundial tem feito lembrar os anos de crise financeira de 1929 e de instauração das ditaduras autoritárias e totalitárias dos anos 30 do século XX. Pela mesma razão, os historiadores não têm qualquer capacidade de previsão do futuro e os seus “prognósticos” só são apresentados “no final do jogo”, quando tudo já terminou. Mas também ninguém pode deixar de afirmar que Salazar, a Ditadura e a PIDE existiram.
O que pretende a extrema-direita hoje
Os historiadores também sabem que é muito melhor conhecermos o passado, de modo a evitarmos caminhos que levem à catástrofe. O facto de Hitler, ao invadir a Polónia, em 1 de Setembro de 1939, ter tido a preocupação de eliminar todas as elites civis e militares polacas, bem como o facto de ele ter considerado decadente toda a arte contemporânea (Entartete Kunst) que não apregoasse os valores nazis ajudam-nos a perceber o que candidatos a ditador estão a tentar fazer hoje.
Qualquer nacional-populista de extrema-direita actual considera supérfluos os livros, a arte e a cultura, mas sabemos que rapidamente chegarão à conclusão que certas categorias de seres humanos também são supérfluos. A história mostra que qualquer candidato a ditador procura também eliminar a voz de intelectuais, das elites, de profissionais e cientistas. Bolsonaro acabou de decretar o fim das faculdades de Filosofia e Sociologia, com o objectivo de “focar em áreas que gerem retorno imediato”.
Acrescentaríamos que o objectivo é também “desfocar” da capacidade de pensar, imaginar, comparar e caracterizar, capacidades que são fundamentais para a nossa actividade. Num momento em que a filosofia, as chamadas “ciências sociais” e humanas, a arte (sobretudo a contemporânea) e a cultura em geral estão sob o fogo da extrema-direita e do nacional-populismo, cabe-nos a defesa destas disciplinas, o recurso aos seus profissionais e a formação de futuros investigadores e professores de História.