Maduro é uma “máscara”. O poder é militar
A preocupação dos militares não é Maduro, é o “regime”. Como lançar um “processo de transição” que os não arraste numa voragem?
A crise na Venezuela chegou a um ponto sem retorno – é o diagnóstico da maioria dos analistas. O desfecho é uma incógnita e parece depender dos militares. No dia 30 de Abril, mais impressionante do que a solidão de Juan Guaidó foi o tempo que Nicolás Maduro levou a aparecer. Algo de estranho se passava nos bastidores. Duas confirmações: o poder real é detido pelos generais; Maduro é uma “máscara do regime”.
Estão as Forças Armadas com Maduro? A ler os analistas venezuelanos, há motivos para pensar que os militares não têm grande respeito pelo Presidente. É Maduro que depende deles e não eles de Maduro. Os militares “sabem perfeitamente que a Venezuela é um Estado falido”, escrevia no dia 1 de Maio a analista Thays Peñalver.
A figura de Maduro está “queimada”. Muitos venezuelanos sentem nostalgia pelo primeiro Chávez, “o redentor dos pobres”, e consideram Maduro responsável pela sua actual ruína. “Maduro enfrenta três grandes desafios”, escrevia em 2017 o historiador Tomás Straka: “A falta de apoio popular, o desastre da economia e o descrédito internacional.”
Mas, se Maduro é o ponto fraco, destituí-lo é um passo que pode abrir um processo incontrolável e fazer desabar o edifício. A preocupação dos militares não é Maduro, é o “regime”. Como lançar um “processo de transição” que os não arraste numa voragem?
Chávez foi um líder carismático e concentrava todo o poder. Foi ele quem promoveu a fusão de uma nova casta económica, política e militar, que implicou a politização das Forças Armadas. Quando morreu, já a Venezuela estava em acelerado declínio.
A militarização
E Maduro? Resume a analista Francine Jácome: “Sem ascendente sobre o sector militar, mas com uma crescente dependência dele para se manter no poder, o presidente Maduro abriu espaços não apenas para uma maior militarização do poder mas também o crescente poderio económico das Forças Armadas.” Os militares tornaram-se “o agente hegemónico na economia e noutras áreas estratégicas do país. (…) A sua crescente participação política e partidária – que inclui o papel de repressores dos protestos sociais ou o trabalho nos serviços secretos – e as suas actividades empresariais potenciaram um auge do militarismo.” Não vale a pena fazer o rol das empresas das Forças Armadas. São uma fonte de poder, riqueza e corrupção.
Escrevia em Fevereiro o diário colombiano El Espectador: “Nem Nicolás Maduro, nem Juan Guaidó. O homem que tem a solução para a grave situação venezuelana chama-se Vladimir Padrino López, ministro da Defesa, líder da cúpula militar e mais chavista do que Chávez.” A chave para uma transição estaria nas suas mãos, diz à AFP o analista Diego Moya Ocampos. “É o único que se atreve a contradizer Diosdado Cabello”, da ala “desesperada” do regime.
Explica Moya-Ocampos que o general é um “superministro, coordenador da administração pública e da supervisão dos ministros, que despacham com ele.” Por fim, gere o mais importante sector da Venezuela de hoje, a Missão Abastecimento e Seguro, ou seja, a distribuição e a produção de alimentos, tal como o sector farmacêutico e vários outros. Nota curiosa: o seu nome não consta da lista de sancionados do Departamento de Estado norte-americano por suspeita de narcotráfico ou violação de direitos humanos.
Se a crise na Venezuela chegou a um ponto sem retorno, a transição é um enigma. Assumirão as Forças Armadas o poder, para negociar com a oposição e promover eleições? Dividir-se-á o regime? Correrá o risco de a imobilidade levar à explosão de motins em grande escala, forçando os militares a disparar contra a população, sob risco de divisão do Exército? A intervenção militar americana não é um cenário sério.
“A História mostra que a transição de uma ditadura para uma democracia não é linear, é sinuosa”, escreveu Moisés Naím pouco antes do 30 de Abril. “Foi muito ingénuo pensar que a simples aparição de um jovem de 35 anos, presidente da Assembleia, que se proclamou Presidente, levanta a mão e Maduro e o seu regime desaparecem.”
Deixo de lado, neste texto, o papel dos serviços secretos cubanos e o jogo das grandes potências envolvidas no conflito. A Venezuela transformou-se, para lá da geopolítica do petróleo, num “campo de batalha ideológico na política internacional” com democracias e ditaduras alinhadas em campos opostos.
O “Estado mágico”
Uma nota final, apenas para memória. A Venezuela é um “petroestado” que, desde meados do século XX, vive e revive as vicissitudes da renda petrolífera. Em 2002, o antropólogo Fernando Coronil narrou a sua trajectória histórica (El Estado Mágico. Naturaleza, dinero y modernidade en Venezuela). A renda petrolífera tornou-se no grande mito nacional: “Graças ao petróleo, era possível passar rapidamente do atraso ao desenvolvimento”. Desde a ditadura de Juan Vicente Gómez (1908-35), criou-se um modelo de Estado “agente transcendente e unificador da nação”, graças ao petróleo.
Nas décadas de 1950 a 1970, a Venezuela era um dos 20 países mais ricos do mundo. O “Estado mágico”, como que por magia, dava créditos, subsídios, empregos, serviços quase gratuitos e uma moeda sobrevalorizada multiplicava o poder de compra, resume Tomás Straka. A ressaca chegou no fim dos anos 1980: altamente endividado, o governo do social-democrata Carlos Andrés Pérez recorre ao FMI, fecha a torneira do maná e provoca uma explosão social: o sangrento “Caracazo” de 1989. Foi “a enorme indignação perante a constatação de que o sonho de voltar à bonança dos anos 70 era impossível”. Abriu o caminho a Hugo Chávez.
Chávez beneficiou do segundo boom do preço do petróleo, que passou de 14 para mais de 100 dólares o barril, tornando o Estado “mais mágico do que nunca”. A pobreza foi drasticamente reduzida. A Venezuela bolivariana cultivou o sonho de liderar um eixo de poder alternativo aos EUA. A gestão do maná petrolífero foi um desastre, entre incompetência e autoritarismo. A produção foi reduzida a metade. E tal como antes, a renda não trouxe a modernização económica.
Com a queda do preço do petróleo, o endividamento torna-se astronómico. A orgulhosa república bolivariana vai alienando, agora à China e à Rússia, parte do seu petróleo. Mas os venezuelanos não esquecem as idades de ouro. Previne, pensando no futuro, Thays Peñalver: “Há um chavismo que permanece activo e que amanhã pode responsabilizar um governo da oposição que não cumpra as suas expectativas.” Mas nenhuma transição restaurará a magia de outrora.