Fiscalização, liquidação e cobrança de tributos: incentivos perversos
Nenhuma entidade privada tomaria uma medida de gestão desta natureza: não pagaria prémios aos seus trabalhadores simplesmente para exercerem as suas funções com o zelo e diligência que lhes são devidos.
Foi publicado a 26 de abril o DL 56/2019, que reforça os poderes e os incentivos aplicáveis à cobrança de dívida à segurança social, estabelecendo para os trabalhadores da segurança social um sistema de incentivos similar àquele que existe para os trabalhadores da administração tributária na fiscalização, liquidação de impostos e cobrança de dívidas. Os incentivos com carácter remuneratório – os prémios – a pagar a estes trabalhadores sairão, neste caso, de um Fundo de Cobrança Executiva que o DL também cria.
O sistema agora criado é, à semelhança do que já existe para a AT, perverso: os trabalhadores encarregados da fiscalização, liquidação e cobrança de tributo não podem ter um interesse direto, máxime, monetário, no resultado destes atos. Não é preciso invocar sequer as garantias constitucionais dos administrados – é fácil de ver que um tal sistema compromete a necessária imparcialidade e o estrito respeito pela legalidade.
Ainda que este sistema fosse, daquele ponto de vista, defensável, a verdade é que tem outro problema: em entidades que gozam do benefício da execução prévia, a fiscalização, liquidação e cobrança dos tributos só são efetivas quando passam o crivo dos Tribunais. Quando não passam, o resultado é este: o trabalhador recebeu o incentivo, o administrado foi incomodado, os Tribunais tiveram de resolver mais um processo e, no final, a SS ou a AT foi condenada em custa, incluindo as de parte, e em juros indemnizatórios. Que nós, contribuintes, suportámos. Entretanto, este processo é mais um prego no caixão das pendências (que, por sinal, não se resolvem com engenharia de mapas judiciários, só se resolvem com mais juízes, assessores e mais funcionários). O custo, mais uma vez, pagámos todos. Pior: o atraso na justiça é um obstáculo ao investimento, quando não destrói, no caminho das liquidações ilegais e execuções prévias, riqueza e emprego que uma sentença que condena ao reembolso, mesmo com juros, já não repara.
Nenhuma entidade privada tomaria uma medida de gestão desta natureza: não pagaria prémios aos seus trabalhadores simplesmente para exercerem as suas funções com o zelo e diligência que lhes são devidos, não os incentivaria a atropelar as regras nem os remuneraria por valores que não sabe se vai efetivamente poder manter. Porque é, então, que o Estado toma estas medidas? Porque é preciso cumprir metas este ano, esta legislatura. Porque os administrados não têm dados (que, muitas vezes, são propositadamente ocultados, como constatará quem queira realizar um estudo científico sobre a percentagem de liquidações e cobranças que são declaradas nulas ou anuladas pelos Tribunais, sobre o custo para o erário público dos processos resolvidos a favor do contribuinte, sobre o impacto económico das pendências). Sobretudo porque o grande preço, quem o pagará serão as gerações futuras. Os nossos filhos e os nossos educandos.
Não fazia falta um sistema de incentivos na nossa administração pública. O que faz falta, o que é preciso introduzir e implementar, de cima a baixo, é um sistema sério de accountability.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico