A Revolução dos Cravos: quando o impossível se tornou inevitável
A questão que permanecia então e permanece hoje é: há outra alternativa para o país que não seja acreditar no mundo do trabalho organizado como saída estratégica para a decadência histórica?
Em 1975, Filomena Oliveira era professora no Alentejo. Chegados ao final do 6.º ano, os alunos não tinham para onde ir estudar: só havia um colégio, católico, privado, para prosseguir os estudos. Com os alunos, pais e a solidariedade dos colegas do colégio privado ocuparam-no – passou a ser a Escola Secundária de Alcácer do Sal.
Ainda há pelo país várias extensões de centros de saúde que eram casas desabitadas, ocupadas por comissões de moradores, com a solidariedade dos médicos, então em luta pelas carreiras e por um serviço nacional de saúde. Em 1974, Vitória era uma jovem que vivia num subúrbio de Lisboa. O “socialismo” era uma palavra vaga. Para ela a revolução começou quando na comissão de moradores do bairro de barracas em que vivia, em Carnaxide, decidiram ampliar a escola e redesenhar o caminho do autocarro. De noite construíram, com madeiras velhas, sinais que colocaram ao longo do caminho como paragens – à porta das fábricas, escolas, bairros. De dia ocuparam o autocarro. Ainda hoje esse percurso existe.
A ditadura portuguesa foi tão longa que milhões nasceram e morreram sem saber o que era viver em liberdade. Quarenta e oito anos de uma “longa noite”. Tortura e prisão por pensar. Exilados por amarem a liberdade. Um partido único, uma Assembleia Nacional de fachada, sem eleições livres. O divórcio era reprimido. Não havia para a maioria um sistema de previdência universal. Entre 1960 e 1973, mais de um milhão e meio de portugueses tinha abandonado o país, fugindo da guerra e da vida pobre a que Salazar chamava “humilde”. Portugal ocupava na Europa um lugar cimeiro nos mais baixos salários – conseguidos à custa da proibição das greves e dos sindicatos livres. À sombra da protecção estatal, uma riqueza obscena concentrava-se nas mãos de poucas famílias. A guerra absorvia anualmente 30% a 40% do Orçamento do Estado – dinheiro que não ia para construir escolas, casas, estradas, saneamento básico...
A Revolução dos Cravos foi o mais importante movimento revolucionário da Europa no pós-guerra. Começou no dia 25 de Abril de 1974, uma quinta-feira chuvosa, como um golpe de estado contra a guerra colonial, liderado pelo MFA. A ligação entre os 13 anos de guerra e o 25 de Abril é crucial: 10 mil mortos do lado português, cerca de 100 mil estimados do lado africano; apoio massivo dos camponeses africanos, muitos trabalhadores forçados, aos movimentos de libertação. Acredito, aliás, que falamos de uma mesma revolução: a Revolução dos Cravos começa de facto em 1961 nas revoluções anticoloniais. Por isso não foi uma “revolução sem mortos”. E não começou no bárbaro massacre da UPA, mas dois meses antes, no bárbaro massacre dos trabalhadores forçados em greve da Cotonang, mortos aos milhares pelo Exército português.
O último império colonial, anacrónico, caiu em 1974. O Estado, em 48 anos de ditadura, não tinha forjado mecanismos de mediação com a população. Este povo criou, ao princípio espontaneamente, formas de poder próprias, as mais importantes no Exército, nos locais de trabalho e habitação, as comissões de soldados, de moradores e de trabalhadores. Formas análogas aos “sovietes” de 1917 – onde o Estado falhava, a população organizava-se autonomamente.
Diferentemente do que foi defendido por Boaventura Sousa Santos, a revolução caracteriza-se não pela força dos trabalhadores dentro do Estado, mas justamente porque o que alcançaram foi feito contra o Estado. O que diferencia o período revolucionário não são as eleições. Isso foi, obviamente, uma grande conquista, que levou às urnas mais de 95% dos portugueses. O que distingue a revolução, porém, é a existência de organismos de decisão dos próprios trabalhadores – isso é uma revolução, diferente de uma quartelada ou de uma situação de estabilidade em que o Estado detém o poder na sociedade.
Em 1975, os bancos foram nacionalizados e expropriados pelo Estado, mas antes tinham estado sob controlo dos bancários, que assim evitaram parcialmente a fuga de capitais. O direito ao lazer considerado essencial na Constituição foi antes garantido quando as comissões obrigaram os municípios a subsidiar o teatro, música, desportos. Lembro uma manifestação, a dos padeiros, cujo slogan era “queremos dormir com nossas mulheres”. Hoje em dia tomamos como certo que há pessoas a vender meias em supermercados às 10h da noite... Foi o tempo dos preços dos bens essenciais regulados, para que as pessoas pudessem ter refeições decentes. O direito de ter uma casa, nomeadamente ocupando casas deixadas vagas para fins especulativos, algumas delas com o apoio dos próprios juízes, como na cidade de Setúbal. O Serviço Nacional de Saúde foi estabelecido por lei em 1979, mas a unificação de um sistema de saúde foi introduzida no rescaldo do dia 25 de Abril com a nacionalização das Misericórdias, a proibição da venda de sangue, carreiras médicas, etc., num regime em que os médicos foram os gestores democráticos deste processo. Quatro mil comissões de trabalhadores, e as áreas de cultivo triplicadas, contra a imobilização produtiva e o desemprego. O espectro da autodeterminação ampliou-se como nunca.
Revolução tardia no século XX, a dos cravos uniu o maior atraso (império colonial) com o mais moderno, um forte sector operário e um já amplo sector de serviços qualificado (professores, médicos, etc.). De certa forma, por esta composição social, foi a primeira revolução do século XXI.
A revolução mudou profundamente o país. Alguns dos seus resultados continuam presentes na educação, na saúde, na segurança social, no lazer e nos espaços colectivos de quem cresceu no Portugal depois de Abril. Mas a revolução não mudou de forma duradoura as relações de produção. O Estado recompôs-se, o regime equilibrou-se, e os governos sucederam-se à margem do envolvimento das pessoas que caracterizou aquele biénio 1974-1975. Porém, essas pessoas mudaram. Quem fez a revolução, porque já cá estava, porque veio de longe trazendo na bagagem o romantismo das revoluções, porque se recusou a combater na guerra, porque exigiu definir onde ficava a creche, como estavam as contas das empresas, porque geriu o conselho directivo, porque aprendeu o significado da democracia directa, nas assembleias de soldados, reuniões gerais de trabalhadores ou estudantes... Nunca tanta gente decidiu tanto na história de Portugal como em 1974 e 1975. Estas pessoas não mudaram tudo. Mas ter feito a revolução mudou-as para sempre.
O fim da revolução dá-se por uma fórmula inovadora, que será depois aplicada na América Latina nos anos 80. Soares lidera a contra-revolução civil a 25 de Novembro, sem mortos e com amplas concessões sociais (Estado social); Cunhal não se opõe porque Portugal estava na NATO e Angola já era da URSS. A revolução acabou não por um golpe fascista, mas numa contenção que obedeceu a pactos estratégicos da guerra fria.
Em 1989, o projecto de Portugal manter-se com amplos direitos sociais (com a pressão da existência da URSS) ruiu para o PCP. Em 2008, o projecto da “Europa Connosco” ruiu para o PS. O projecto que venceu – e que perdura – coloca outra vez o país na rota dos baixos salários, da migração massiva, da desqualificação e do atraso. Não acreditaram, nem Soares nem Cunhal, na capacidade dos trabalhadores de se governarem a si próprios. A questão que permanecia então e permanece hoje é: há outra alternativa para o país que não seja acreditar no mundo do trabalho organizado como saída estratégica para a decadência histórica? Autora de História do Povo na Revolução Portuguesa (Bertrand)