Recolha de dados étnico-raciais nos Censos 2021: um passo à frente no combate ao racismo
A possibilidade de recolha sistemática destes dados é um avanço histórico em Portugal. Uma sociedade que não tem medo de publicar estatísticas sobre desigualdades étnico-raciais está um passo à frente no combate público ao racismo.
No dia 3 de abril, deu-se um passo importante no reconhecimento de que o racismo é um problema estrutural na sociedade portuguesa. Nesse dia, o Grupo de Trabalho Censos 2021 – Questões “Étnico-Raciais” (GT), que iniciou os seus trabalhos a 5 de fevereiro de 2018, entregou o seu relatório final e respetivas recomendações à tutela. A missão e objetivos do GT foram regulados pelo Despacho n.º 7363/2018, sendo que a sua composição era diversificada institucionalmente (académicos de diferentes instituições do país, representantes do INE, dos Observatórios da Imigração e das Comunidades Ciganas, da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial, da associação SOS Racismo), e, por reivindicação de coletivos e sujeitos afrodescendentes, do ponto de vista étnico-racial (representantes de afrodescendentes, comunidades ciganas e imigrantes).
Após um percurso de reflexão, com o intenso debate interno expectável, e apoiando-se nos resultados de oito focus groups com as comunidades racializadas e da sondagem realizada para o efeito pela Universidade Católica (CESOP), a principal recomendação deste GT é a introdução, nos Censos 2021, de uma pergunta sobre a pertença/origem étnico-racial. Por maioria de votos (nove a favor, quatro contra e uma abstenção), o GT considerou ser esta a melhor forma de retratar a diversidade e as desigualdades étnico-raciais no país, pelo que constitui um instrumento fundamental para alavancar políticas públicas informadas de combate ao racismo. A posição maioritária no GT converge, assim, com os resultados do Eurobarómetro sobre “Discriminação na UE em 2015” e múltiplas outras recomendações internacionais (por exemplo, do Comité das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial em 2016).
Ao propor-se este novo cenário, surge também uma oportunidade de regular a recolha e/ou tratamento de dados desta natureza tal como ela tem sido praticada por algumas instituições e serviços nas últimas décadas. Por exemplo, o Ministério da Educação recolheu dados para caracterização do público escolar no âmbito da Base de Dados EntreCulturas desde inícios dos anos 1990 até meados dos anos 2000, e, mais recentemente, a propósito do estudo Perfil Escolar da Comunidade Cigana. O Programa Escolhas do Alto Comissariado para as Migrações tem continuado a usar dados de natureza semelhante para caracterização dos públicos-alvo e beneficiários das suas iniciativas. O Observatório das Comunidades Ciganas (2014) e o Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (2015) têm conduzido estudos com amostras parciais e não representativas sobre as comunidades ciganas. Mais, as associações antirracistas, assim como aqueles que estudam os processos contemporâneos de reprodução do racismo, há muito que denunciam situações de identificação étnico-racial nas esquadras da polícia, nos hospitais ou centros de saúde, e nas escolas públicas – nem sempre realizadas de forma transparente ou com vista ao combate ao racismo.
A forma como estes dados têm sido recolhidos e/ou tratados é frequentemente problemática à luz das recomendações nacionais e internacionais nesta matéria, que apontam para: 1) o caráter voluntário da resposta, como ditam os princípios éticos sobre dados pessoais sensíveis; 2) a proteção do anonimato, como já se faz nos Censos tanto para perguntas de natureza sensível (por exemplo, sobre pertença religiosa), como relativamente a qualquer outro tipo de dados; 3) o consentimento informado, explicitando-se quer o ato, quer os objetivos da recolha; 4) a categorização por autoidentificação, e não por terceiros, permitindo o direito à afirmação da categoria de pertença; 5) a possibilidade dos inquiridos indicarem pertenças “mistas” ou categorias não previstas no formulário; 6) em consonância com a legislação nesta matéria, preservar o carácter inviolável dos dados recolhidos pelos inquiridores, legalmente impedidos de transmitir e manipular a informação recolhida; 7) a limitação do acesso por terceiros a bases de microdados, e especificação das condições especiais em que esse acesso pode ser realizado, de forma a garantir a proteção dos dados. Estas são as condições propostas pelo GT e que devem estar salvaguardadas neste processo de recolha e tratamento de informação.
No processo conducente aos Censos 2021, é necessária uma campanha de sensibilização alargada sobre esta questão e um organismo independente e específico sobre as questões do racismo e xenofobia (autónomo em relação ao domínio da imigração). Da mesma forma, é fulcral que as comunidades e sujeitos racializados, assim como as associações antirracistas, participem efetivamente em todo o processo e em posições de tomada de decisão. Além de um pilar incontornável na democracia, a participação e representatividade das populações racializadas é uma forma de acautelar os riscos que este tipo de recolha pode colocar. Igualmente, a legitimidade deste processo e a adesão da população obrigam a um compromisso do Estado com um programa de medidas de política pública de combate ao racismo – e que alavanque a Década Internacional dos Afrodescendentes e uma verdadeira estratégia para a inclusão das comunidades ciganas.
Tendo o relatório e as recomendações do GT sido entregues à tutela, cabe agora às instituições competentes na matéria zelar pela concretização das recomendações e ao movimento manter-se mobilizado para que o processo vá até ao fim e ao encontro das expectativas das comunidades racializadas e daqueles que querem um combate ao racismo mais efetivo. A possibilidade de recolha sistemática destes dados é, nesse sentido, um avanço histórico em Portugal. Uma sociedade que não tem medo de publicar estatísticas sobre desigualdades étnico-raciais está um passo à frente no combate público ao racismo.
Os autores escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico