Não se luta contra o cancro, vive-se a doença
Os progressos têm sido incríveis e, têm conseguido curas, têm conseguido intervir de forma a passar duma doença aguda para uma doença crónica, com largos anos de sobrevida.
Nasci numa família de médicos. Os meus pais eram médicos, o meu tio, um tio-avô, primos, marido e filha, tudo médico. Todos referências incontornáveis na medicina portuguesa, inovadores, cientifica e clinicamente. Cresci e vivi sempre com a intensidade das contínuas conversas sobre a doença, mas principalmente sobre doentes e famílias que atravessavam fases e períodos difíceis, impensáveis para qualquer um. Daí nasceu a minha precoce vocação para a enfermagem. Poder acompanhar, estar ao lado, fazer pelo outro, disponibilizar-me.
Atualmente tenho vindo a ser confrontada com títulos de noticias em revistas, jornais, televisão, sobre figuras públicas vitimas de cancro. Frases fortes, ditas com convicção por pessoas a viver diagnósticos recentes de cancro, ou em fase de tratamento, por vezes já longo. Comentários como “vou lutar contra a doença”, “estou numa batalha contra o cancro”, ou outras como “perdeu a luta contra o cancro”, “foi vencido pela doença”.
Fico preocupada com esta forma de pensar sobre a doença oncológica. Fico mesmo preocupada. Afirmações como estas levam a pensar que quem morre vitima dum cancro, perdeu a batalha mais determinante da sua vida, é um derrotado. Falhou. Não teve força suficiente. Mas isto é um verdadeiro engano, é uma falsidade em que se cai, é um pesadelo pensar assim.
Na doença oncológica, no cancro, nas situações cancerosas, não se luta contra a doença. Nem pensar! Vive-se a doença. Vive-se um período curto ou longo duma doença, na qual cientistas e clínicos de todo o mundo têm investido muito. Têm investido no seu diagnóstico precoce, no seu tratamento e na sua cura. Os progressos têm sido incríveis e, têm conseguido curas, têm conseguido intervir de forma a passar duma doença aguda para uma doença crónica, com largos anos de sobrevida. Mas, também têm investido imenso em conseguir controlar sintomas pesados, duros pela sua violência. No acompanhamento da doença, dos doentes e da família nos percursos que se prevê que irão ser terminais.
Há muitas condições que determinam o percurso da doença oncológica, desde o tipo, localização, estadio, a reserva fisiológica de cada doente, enfim imensas nuances que fazem com que muitas vezes os percursos sejam muito diferentes de doente para doente. Por isso é impossível dizer com toda a certeza: vai ser este o seu percurso.
Estas doenças, estes diagnósticos, obrigam o doente, a família, os amigos, os médicos, os enfermeiros, entre outros, a saberem viver a doença. Saber viver este percurso com expectativas, mas com realismo. Viver a doença com o apoio, com a docilidade, com a aceitação que qualquer doença grave exige. Com a aprendizagem do que é a vida. Do que é o essencial na vida. De como o tempo pode ser intenso, rico em relação com os outros, em afetividade, em disponibilidade, em irmandade verdadeira. Como é importante viver-se a doença descentrado dela, mas sim viver com ela. Voltar a valorizar, numa perspetiva diferente, as maravilhas que temos, as pessoas, a festa, o riso, as lágrimas, o abraço, o beijo, o colo, o mundo, a vida. Os dias passam a valer semanas. As semanas passam a valer meses, os meses, anos e cada ano décadas infindáveis.
A grande batalha contra o cancro é ganha não no tempo que se vive, mas na forma como se pode transformar o que se vive ou viveu. Quem morre, quem parte, ganha a batalha mais importante e difícil da vida. Ganha, a admiração, o respeito, o amor eterno de quem fica e o acompanhou. Fica para sempre a presente por onde passou. Tal com Viktor Frankl dizia “heróis não são os que sobrevivem, heróis são os que souberam viver até partir”. Esses são os nossos heróis para sempre!