A alegria de nos chamarem “menino” e outros sintomas de quarentão
Constato aos 41 anos que sou uma espécie de Frankenstein. Se me aparecerem dois parafusos no pescoço acho que ninguém vai estranhar.
- Num restaurante, a empregada de mesa chamou-me “menino” e eu fiquei contente. Ela disse “O menino, o que vai querer?” e uma sensação inesperada de bem-estar invadiu-me. Os meus olhos quarentões iluminaram-se e uns calores subiram por mim acima, como os afrontamentos que nunca experimentarei. Senti-me lisonjeado. Pareço a minha mãe, que por volta dos quarenta chegava a casa toda ufana e dizia “A cabeleireira tratou-me por menina, vejam lá!” Eu achava ridículo e pensava “É a minha mãe a tentar lidar com o envelhecimento, coitada.”
Agora pelos vistos também gosto. Logo a seguir, a dita empregada de mesa vira-se para o octogenário da mesa ao lado, que lê o Correio da Manhã em alta concentração, letra a letra, possivelmente porque as dioptrias dos óculos garrafais já não são suficientes, e pergunta-lhe: “O menino vai querer café?”
“Boa”, pensei, “eu e ele somos igualmente meninos”. Percebi que ela dizia aquilo a todos ou então só a pessoas de certa idade, o que me colocava automaticamente no grupo dos merecedores de tratamento condescendente. Resultado, o que parecia uma linda história de robustecimento do ego acabou em tragédia auto-estímica.
- - Cada vez mais me assemelho a um cão Basset, porque as pálpebras estão a descair. Aqueles cães que parecem estar sempre a ganir por dentro, como se estivessem cheios de pena de si mesmos, literalmente com cara de cachorrinhos. Só espero que isso ajude a que cuidem de mim na velhice. Desde já aviso que se me atirarem um pau não vou buscar.
- Quando faço zapping detenho-me cada vez mais na RTP Memória. O dedo parece que gruda quando passo ali, como se sentisse o chamamento da sereia idosa. No outro dia estava a dar o talk-show do Júlio Isidro e eu parecia o meu avô a rejubilar com malta da velha guarda “Olha, este!”, “Olha, aquela!” A RTP Memória é a minha cena e isso assusta-me.
- Começam a aparecer-me uns pontinhos castanhos na pele. Eles vêm de mansinho, mas já topei alguns. Quando somos crianças é giro ter pontinhos castanhos na cara, vulgo “sardas”. Mas à medida que envelhecemos são pontinhos pelo corpo todo, cada vez maiores. Parece que apanhámos uma varicela castanha ou uma praga qualquer, da traça da batata ou míldio, não faço ideia. Acho que vou consultar um engenheiro agrónomo.
- Sinto-me a criar uma pança para o futuro, como quem cria um PPR. Experimento sentimentos contraditórios quando olham para a minha barriga com abas e dizem: “Estás em excelente forma!” Porque normalmente é dito por amigos ou familiares pançudos e soa a conversa de nereidas anafadas, que nos querem atrair para o seu clube.
- Ainda compro CDs. No Natal calcorreei várias lojas para encontrar um CD que queria oferecer ao meu irmão e os funcionários olhavam para mim com ar de pena e estranheza a pensar: “Este ainda vive no mundo dos CDs.” Num dos sítios chegaram a responder-me devagarinho, como a um louco medicado: “Olhe, os CDs estão naquele cantinho, mas a secção é para descontinuar.” Só faltou falarem mais alto, para ver se eu compreendia melhor. Da próxima vez ponho a mão na orelha em funil para tornar as coisas mais interessantes.
- Já entrei na fase dos pêlos estranhos. Começam a irromper pêlos em catadupa de dentro das orelhas e do nariz, como bouquets. Mas também brotam uns pêlos matreiros da parte de fora das orelhas e do nariz. E eu sei que isto acaba mal, porque vou ficar como o meu avô, que tinha o seu bosque pessoal de rijos e viçosos pêlos na batata do nariz.
É o corpo a dizer-me que já cumpro os requisitos para entrar na andropausa, pelo que já não é preciso manter o cenário de pé e é deixar o matagal crescer à vontade, como ervas daninhas. Houve tempos em que o meu organismo tinha um Plano de Ordenamento do Território e mantinha as pilosidades em ordem. Mas isso acabou. Agora sou eu que faço abarba, nariz, orelhas e é se quero. No outro dia apareceu-me um pêlo branco na narina e, como sou careca, só aí percebi que estava a ficar grisalho. Ou seja, não só não tenho cabelo, como o envelhecimento me aparece pelo nariz. Mais digno é impossível.
Quanto mais convivo comigo, mais me apercebo de que não sou único. Sou uma colagem esquisita dos meus antepassados: o nariz peludo do avô, as manias de meia-idade da mãe, os tiques do pai – de quem herdei uma estranha tendência para levar a mão à orelha, a fim de coçar o lobo da mesma. Quando a mão vai a meio caminho dou por mim a pensar “Porque é que eu estou a fazer isto?” Mas faço na mesma. Constato aos 41 anos que sou uma espécie de Frankenstein. Se me aparecerem dois parafusos no pescoço acho que ninguém vai estranhar.
Autor do blogue Gonçalve Jarco