Os sete erros factuais do parecer sobre Fernão de Magalhães emitido pela Real Academia de História espanhola
Texto cria um atrito artificial e inútil, pois a história de Fernão de Magalhães e de Juan Sebastián Elcano está bem apurada e felizmente recolhe largos consensos. Não havia necessidade.
O principal erro do texto emitido pela Real Academia de História espanhola sobre Fernão de Magalhães, a pedido do jornal ABC, consiste na circunstância de criar um atrito artificial e inútil, pois a história de Fernão de Magalhães e de Juan Sebastián Elcano está bem apurada e felizmente recolhe largos consensos, não apenas entre historiadores portugueses e espanhóis mas também de outras nacionalidades. Outro erro grave nesse texto consiste no facto de não se apontar a evidência de que a viagem que permitiu a realização da primeira circum-navegação do mundo ter resultado do mérito científico daquele fidalgo do Porto que foi fruto dos conhecimentos e formação que adquiriu em Portugal e nas áreas da sua expansão desde 1505 até ir para Espanha em 1517, com uns 37 anos.
Evidências como as de que Magalhães foi para Espanha por desentendimento com D. Manuel e ter contado com a oposição deste monarca ao projecto que concebera, além de factos como os de se ter radicado em Espanha menos de dois anos, entre 20 de Outubro de 1517, quando chegou a Sevilha, e 20 de Setembro de 1519, quando iniciou a sua grande viagem, e de se ter posto ao serviço de Carlos I de Castela, que o aceitou e financiou, não têm nada que todas as pessoas não saibam já. O que importa também realçar é que a decisão de o referido monarca apoiar aquele português resultou da circunstância de saber que nenhum espanhol era capaz de fazer a viagem que ele se propunha levar a cabo, de acordo com um projecto que concebera em Lisboa entre 1516 e 1517.
Além das realidades essenciais atrás apontadas, há que registar erros factuais no desnecessário parecer que a Academia emitiu [divulgado no início deste mês] e que temos dificuldade em compreender como puderam ser cometidos. Apontemos então alguns deles, em breves observações:
1.º erro: “El 18 de Marzo de 1518 Magallanes viajó a Valladolid a presentar su proyecto, el de encontrar el paso a las islas de la Especiería, al Rey Carlos I”
Esta data está errada, pois foi a 20 de Janeiro de 1518 que Fernão de Magalhães partiu de Sevilha rumo a Valladolid, onde teve um primeiro encontro com Carlos V [Carlos I de Espanha], talvez a 2 de Março desse mesmo ano, como o afirmou de forma bem documentada Demetrio Ramos Pérez no seu estudo: “Magallanes en Valladolid: La Capitulación”, in A Viagem de Fernão de Magalhães e a Questão das Molucas, Lisboa, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1975.
2.º erro: “La flota partió de Sevilla el día 10 de Agosto de 1519 hacia Sanlúcar, donde se incorporó Magallanes después de hacer testamento”
Sendo certo que os navios deixaram Sevilha a 10 de Agosto, há que assinalar ter Fernão de Magalhães embarcado mais tarde, deixando Sanlúcar de Barrameda a 20 de Setembro de 1519, já depois de ter assinado o seu testamento em Sevilha, a 24 de Agosto de 1519, como sabemos desde que Martín Fernández de Navarrete o publicou parcialmente em Colección de los viajes y descubrimientos que hicieron por mar los españoles desde fines del siglo XV (volume 4, Madrid, Imprenta Nacional, 1837), havendo versões integrais desse testamento publicadas em datas posteriores.
3.º erro: “cruzado este océano [Pacífico], com sólo dos navios” (entretanto, no parecer disponível no seu site, a Academia já corrigiu este dado)
Na realidade, foram três os navios que o atravessaram — a [nau] Trinidad, a Victoria e a Concepción —, pois este último só foi destruído a 2 de Maio de 1521, depois do massacre ocorrido em Cebu, nas Filipinas, um dia antes.
4.º erro: “Después de la desaparición de Magallanes, se hicieron cargo de los dos navíos que quedaban una vez que llegaron a las Molucas”
Na realidade, quer a morte do capitão-mor, ocorrida nas Filipinas, quer a viagem que se seguiu até às Molucas ocorreram no oceano Pacífico e não no oceano Índico, pois é naquele que se encontram as Filipinas e as Molucas.
5.º erro: “Después de cargados los navíos, pusieron rumbo a Tidore”
Esta afirmação é incompreensível, pois foi precisamente nessa ilha de Tidore, que pertence às Molucas, que foram carregados os navios de cravo.
6.º erro: “el viaje de vuelta por el Índico, (...) fue el más peligroso de toda la inmensa travesía, tanto por los fenómenos naturales como por la necesidad de evitar las aguas portuguesas”
Tais afirmações não são verdadeiras, pois a navegação pelas águas do Sul do Índico feita pela Victoria, apesar das dificuldades por que passou, não se pode considerar que tenha sido muito perigosa, a não ser pelo receio de poder ser interceptada pelas embarcações portuguesas. Com efeito, aquele navio percorria uma zona do mundo sob soberania portuguesa definida pelo Tratado de Tordesilhas, o qual era reconhecido por Carlos I, que, por isso, proibira terminantemente que tal oceano fosse navegado pela sua armada.
Por outro lado, não se pode comparar, de qualquer forma que seja, a perigosidade da navegação da nau Victoria num oceano como o Índico, que era já conhecido, com a parte original da viagem dirigida por Fernão de Magalhães, que atravessou imensas dificuldades durante o processo em que se descobriam terras e mares desconhecidos, desde o rio da Prata até às Filipinas, incluindo toda a extensão do vastíssimo oceano Pacífico.
Esta observação, note-se, não tira todo o mérito e glória de se ter ficado a dever exclusivamente a Elcano a circunstância de, em 1522, ter sido o único responsável pela realização da primeira volta ao mundo feita de seguida, a mesma volta ao mundo que Magalhães não queria fazer, apesar de já a ter concluído de forma indirecta, em duas etapas, quando foi morto em 1521, nas Filipinas (em 1512 tinha ido às Molucas, que lhe ficam a sul).
7.º erro: “Los tripulantes de la Trinidad, apresados por los portugueses, no pudieron regresar hasta varios años después, cuando fueron liberados al pactar las coronas de Castilla y Portugal un acuerdo sobre la posesión de las Molucas”
Estas noções contêm erros, pois os referidos prisioneiros foram libertados em Lisboa em 1526, antes do Tratado de Saragoça, assinado a 22 de Abril de 1529, data em que Castela reconheceu que as Molucas pertenciam a Portugal.
E aqui me detenho, por já ir longa esta muito breve análise de um texto tão curto quanto infeliz. Não havia necessidade...
Historiador