Morreu Agnès Varda, a cineasta que inventou a sua nouvelle vague
A realizadora nascida na Bélgica tinha 90 anos. Gostava, de forma vibrante, das palavras, das imagens e das pessoas. Anunciou a nova vaga do cinema francês quatro anos antes de Os 400 Golpes, de Truffaut, cinco anos antes de O Acossado, de Godard.
E a morte, Agnès? Já com os gravadores a desligarem-se, Agnès Varda dizia, em Fevereiro de 2017, a um grupo de jornalistas que a queriam ouvir falar de Visages Villages/Olhares, Lugares, o filme em que uma cineasta/fotógrafa e um fotógrafo/graffiti artist JR viajavam por França com uma carrinha photomaton enchendo a paisagem de colagens ao vivo, de colagens vivas: “Dying in peace is my dream”. Em Fevereiro de 2019 anunciava no Festival de Berlim, onde apresentou Varda par Agnès, derradeira prova das inesgotáveis vidas de uma fotógrafa, de uma cineasta, de uma feminista, que tratava de “abrandar” para chegar a essa “necessária paz”, que se “preparava para dizer adeus”. Agnès Varda, que mais do que ser uma figura que anunciou a nouvelle vague foi uma cineasta que inventou a sua nouvelle vague, uma das poucas mulheres que se destacou num universo e num meio masculinos, o dos anos 60 do cinema francês, companheira durante 30 anos de outro muito amado cineasta, Jacques Demy, morreu aos 90 anos.
A notícia foi dada pela imprensa francesa: o Le Monde, citando a entourage da cineasta, avançou que a realizadora de Duas Horas na Vida de Uma Mulher morreu na noite de quinta para sexta-feira; o Libération precisou que morreu em casa na sequência de um cancro, na Rue Daguerre, em Paris, bairro que foi sempre observando e filmando, rodeada pelos familiares. “Deveria inaugurar esta [sexta-feira à] noite uma exposição em Chaumont-sur-Loire, que agora vai abrir sem ela”, declarou Cécilia Rose, sua produtora há 17 anos.
“O jovem cinema deve-lhe tudo”, intitulava um artigo de Jean Douchet no semanário Arts em 1960.
Fotógrafa mesmo como cineasta
Agnès Varda, nascida em Ixelles, na Bélgica, instalou-se com a família em Sète, à beira do Mediterrâneo. Em Paris estudou fotografia na Escola de Belas Artes e História de Arte na escola do Louvre. Desembarcou em 1947 com a sua câmara fotográfica no Festival de Avignon, de que passou a ser a fotógrafa oficial em 1951. Foi nessa década que a fotógrafa visitou Portugal: é dela a imagem de Maria do Alívio a caminhar, descalça e vestida de negro, numa rua da Póvoa de Varzim em 1956, com um cartaz com Sophia Loren rasgado num muro.
Estrear-se-ia na realização em 1954, com La Pointe Courte – os desapontamentos de um casal, Philippe Noiret e Silvia Monfort, em Sète, precisamente. Foi o anúncio, quatro anos antes de Os 400 Golpes, de Truffaut, cinco anos antes de O Acossado, de Godard, da tal “vaga”. Foi a primeira manifestação, nas palavras da própria, “de um fenómeno colectivo, de um movimento, que teria existido de qualquer maneira".
Sete anos depois apresentava em Cannes a longa-metragem Duas Horas na Vida de Uma Mulher (Cléo de 5 à 7): Cléo deambula pela cidade à espera do resultado das análises que lhe vai dizer se tem um cancro. Varda insistia em classificar o filme como um “documentário subjectivo” pela experiência de tempo que o espectador construía ao estar perto de Cléo. A partir daí continuou um muito livre atravessar de fronteiras, de géneros e de formatos e países, passando da fotografia ao cinema (mas nunca deixou de ser uma fotógrafa, mesmo quando já era muito mais conhecida pela sua carreira de cineasta), da longa à curta-metragem, da ficção ao documentário, como que empurrada sem plano e com urgência, sempre implicada. Isto é, o seu cinema sempre foi “engajado”, e não apenas por causa de Salut les Cubains (1963), de Black Panthers (1968) ou do filme colectivo Loin du Vietnam (1967)... Não apenas, por, como disse Claude Lelouch reagindo à notícia da morte, ter feito da profissão de cineasta “um métier tão importante para homens e mulheres” e por ter travado os combates certos. Fundamentalmente “engajado” por causa das pessoas e dos locais que encontrava. Que podiam ser, por exemplo, os murais de Los Angeles, cidade que ela descobriu que sonhava em conjunto: os rostos e corpos gigantes com os esquecidos das histórias oficiais, os gangs, tudo isso era um “everybody dreaming together”.
O feliz (des)encontro com JR
O filme que fez a partir desse encontro, o vigoroso, vibrante Mur Murs (1981), que mostra de forma exuberante as coisas de que Varda tanto gostava, as palavras, as imagens e as pessoas, foi importante para um street artist da actualidade como JR. E o tal filme que ele e Varda fizeram juntos recentemente, Visages Villages, que afinal também é a encenação do feliz (des)encontro entre eles, pode ser visto como gesto de devolução da energia e da musicalidade de que a cineasta se alimentara em Los Angeles – sempre uma implicação didáctica e amorosa.
JR não se fartou de querer estar à altura disso e desse encontro que, no momento em que aconteceu, cada um pôde exclamar: “Como é que não nos tínhamos encontrado antes?”. No pós-Olhares Lugares o trintão JR foi dedicando posts cúmplices e afectuosos à octogenária Agnès nas redes sociais, e agora chegou o último: "For my shooting star wherever you are”.
Mur Murs, aquele documentário sobre a street art de Los Angeles, é um dos “filmes de fotógrafa" da sua obra (como Salut les Cubains!, no princípio dos anos 60, montagem de centenas de fotografias tiradas durante uma visita à Cuba revolucionária) em que se revelava um gosto pelo detalhe aparentemente perdido no grande mar da “realidade”, mas imediatamente tornado significativo, o gosto pelo “instantâneo”, pelo flash, pela poesia quotidiana escondida do olho nu.
Como disse por altura da estreia de Visages Villages: “Espero que algo me empurre, uma espécie de emergência. Por exemplo, quando descobri que havia mulheres jovens vagabundas on the road, e não apenas homens, e que uma delas tinha sido encontrada morta, atirei-me ao assunto e fiz um filme [Sans Toit ni Loi/Sem Eira nem Beira, 1985, com uma Sandrine Bonnaire de 18 anos, Leão de Ouro em Veneza]. Escrevi Le Bonheur (A Felicidade, 1965) em dois dias. Tento concretizar o filme o mais perto possível do momento em que pensei nele. Há cineastas que esperam dois ou três anos para arranjarem dinheiro para os seus projectos. Não tenho essa coragem. Preciso de fazer depressa, preciso de estar na exactidão do momento. Quero que o filme saia a partir do nada e que a inspiração me empurre.”
Essa espécie de aproximação “selvagem” (que por exemplo podia fazer coexistir dentro do mesmo filme ficções e documentários) vinha do temperamento de Agnès, mas também da sua relação com o cinema – dizia sempre que “não era cinéfila”, apesar de se ter visto na enxurrada da mais “cinéfila” corrente cinematográfica de sempre, a nouvelle vague (e de ter feito um filme como Cléo de 5 a 7, perfeitamente a par dos principais preceitos nouvelle vague). Mas a sua origem era a “margem esquerda”, os meios intelectuais mais “clássicos” e mais “literatos” de onde veio, também, Alain Resnais – de quem talvez estejam mais próximas as suas mais célebres ficções dos anos 1960, como Le Bonheur, ou mais estranho, mais nouveau roman, Les Créatures.
O casamento com Jacques Demy, que durou até à morte dele em 1990, foi a grande história de amor da sua vida. Um dos seus mais belos filmes é Jacquot de Nantes (1991), que encena a biografia da infância e juventude de Demy, filmada com uma entrega e uma delicadeza tocadas por alguma forma de graça, e onde é evidente o amor de Agnès por aquele homem.
A partir desse momento, quando Agnès passara já os 60 anos, o “património afectivo” da realizadora tornou-se um dos seus principais temas e matérias, assim como a sua própria figura foi, cada vez mais, ocupando o centro do filmes: em Os Respigadores e a Respigadora (onde há aquele plano das mãos dela, e a frase que diz que “estas mãos avisam-me que o fim não tarda”); nas Praias de Agnès, incursão explícita no trabalho da memória autobiográfica; em Olhares, Lugares; no último filme que deixou, Varda par Agnès, estreado no Festival de Berlim deste ano de 2019.