Muitos dos estudantes dos cursos de cinema no Porto que anteontem lotaram o Auditório de Serralves poderão vir a figurar num dos próximos filmes-documentário de Agnès Varda, que os captou numa demorada panorâmica no final da fabulosa “lição” que lhes proporcionara sobre a sua arte e a sua obra.
Quem certamente terá lugar reservado numa das novas “docu-ficções” da autora deAs Praias de Agnès é Manoel de Oliveira, que a cineasta filmou repetidamente durante os dois dias em que esteve no Porto, no âmbito da Festa do Cinema Francês. Era “o mestre e a aluna”, repetia Agnès Varda, de 81 anos, sempre que se referia à sua relação com o decano centenário dos cineastas.
Manoel de Oliveira retribuía com elogios e declarações de “admirador sem limites” da obra da sua colega belga. E invocou mesmo uma definição de Leonardo da Vinci sobre a música - “a estrutura do invisível” - para classificar os filmes de Varda como “a forma de mostrar o invisível, o que se esconde atrás das imagens”.
Na sua longa mas nunca monótona conferência, Agnès Varda explicou que uma das motivações que a leva a filmar - como a fotografar ou, mais recentemente, a criar instalações - é o desejo de revelar “o mistério” do que fica fora do enquadramento do ecrã ou da fotografia. “Os filmes mais interessantes são os que revelam o que acontece para além daquilo que se vê. Do mesmo modo que, por detrás de um diálogo, se percebe que há sempre um não-dito que tem importância”, explicou.
O instante decisivo
Depois de ter sido apresentada pelo director artístico do Museu de Serralves, João Fernandes, como “uma das mais excitantes criadoras do cinema europeu”, Agnès Varda (traduzida por Saguenail, realizador francês há vários anos radicado no Porto) começou por se felicitar pela adesão dos estudantes ao encontro consigo. “Não sei por que é que vieram. Eu vim porque me pediram”, comentou a realizadora, ao mesmo tempo que assinalava o contraste da “plateia curiosa e vibrante” dessa tarde com a da noite da véspera, quando o seu filme As Praias de Agnès fora apresentado para uma audiência de convidados.
A realizadora começou por falar da fotografia, e citou Cartier-Bresson para dizer que também ela procura, com este meio, “captar o instante decisivo” de que falava o grande fotógrafo francês, porque entende a fotografia como “o instante do filme da vida” de todos nós. Dela e dos outros, e dos outros com ela, como Varda explicara na apresentação de As Praias de Agnès, um híbrido de documentário e ficção realizado sempre junto ao mar. “Eu sempre vivi perto de praias”, disse a realizadora, que também apresentou o seu filme mais recente como “uma grande casa com várias portas”, cabendo ao espectador escolher aquela por onde quer entrar nele.
Quando, no encontro de anteontem, a pretexto de uma vídeo-instalação apresentada em Veneza, voltou a falar de portas, Varda inquiriu de novo a experiência de Oliveira. “A porta é sempre uma coisa extraordinária”, respondeu o realizador de O Convento, que citou Tosltoi, que em Guerra e Paz representa a morte através de uma porta - “a passagem para o outro lado” -, e os irmãos Marx, que num dos seus filmes recriam uma cena em que uma porta os impede de jogar golfe porque está a chover, mas a porta ao lado abre-se para um dia de sol radioso...
Varda falou depois do seu filme recente mais conhecido, Os Respigadores e a Respigadora, e de como nele aborda temas sociais respeitando ao máximo os “protagonistas” reais, mas sem deixar de se divertir e de retirar prazer do acto de filmar. “É um acto de liberdade que quero transmitir aos estudantes: nunca nos devemos deixar formatar”, exortou, citando Buñuel, para quem “por detrás de um mistério está sempre a imaginação do homem”.
“Temos de cultivar essa imaginação como se fosse um jardim”, concluiu Varda, lembrando como na Bienal de Arte em Veneza de 2003 se vestiu de batata para promover a sua instalação vídeo, e assim obteve grande visibilidade e sucesso. “Nessa altura, passei de uma velha cineasta a uma jovem artista.” Um estatuto confirmado na última Bienal de Veneza, onde instalou os vídeos Bord de mere, Le tombeau de Zgougou (uma homenagem ao gato que a acompanhou, e a Jacques Demy, durante vinte anos), que agora se podem ver também na capela da Casa de Serralves.