O museu está cheio? Demos graças à moda
Segundo a lista anual do The Art Newspaper "Heavenly Bodies: Fashion and Catholic Imagination", do Metropolitan Museum of Art, foi a exposição com maior número de visitante de 2018 em todo o mundo. A moda continua a ganhar terreno no mundo da arte.
Chamaram-lhe a versão feminina do Papa. De vestes ornamentadas e mitra à cabeça, Rihanna marcou a abertura da exposição “Heavenly Bodies: Fashion and Catholic Imagination”, na primeira segunda-feira de Maio passado. Ao todo, a exposição do Costume Institute — aberta ao público entre 10 de Maio e 8 de Outubro — teve cerca de 1,7 milhões de visitantes, segundo o The Art Newspaper. Há quase duas décadas que o Metropolitan Museum of Art (Met), em Nova Iorque, não ocupava o topo da lista anual das 20 exposições mais visitadas desta publicação.
O sucesso “esmagador” da mesma, aponta o jornal, “demonstra como o apetite do público para exposições dedicadas à arte está em rota ascendente”. A influência do estatuto de celebridade, por sua vez, contou como variável para a lista dos museus com maior número de visitas. O Louvre, em Paris, ocupa o primeiro lugar, com um número recorde de 10,2 milhões de visitantes — sendo que o último recorde que tinha superado foi em 2012, com 9,7 milhões — e atribui-se esta subida (de 26%, relativamente ao ano anterior) a três factores: o encanto de Delacroix; a influência de Beyoncé e Jay-Z’s — que filmaram lá o videoclip de Apeshit —, e um aumento de visitantes na cidade, em geral.
Os resultados revelados pelo jornal mensal são mais um indicador numa tendência que tem vindo a acentuar-se ao longo dos anos, o da crescente popularidade das exposições de moda, seja em museus especializados, seja em museus de artes plásticas. E toca também num outro ponto de contínuo debate: será a moda arte?
Em 2017, a exposição montada à volta do percurso de Christian Dior — que marcava o 70.º aniversário da maison fundada pelo criador — atraiu, em seis meses, mais de 700 mil visitantes. Marcou, segundo o Independent, o recorde de visitantes a uma única exposição na história de 112 anos do Museum of Decorative Arts, em Paris. A exposição passou recentemente para o Victoria and Albert Museum (V&A), onde estará patente até 1 de Setembro, a data foi alargada recentemente. No mesmo ano, 276 mil pessoas foram à National Gallery of Victoria ver uma exposição também centrada da Dior, mais concretamente nos 70 anos de alta-costura ("The House of Dior: Seventy Years of Haute Couture").
Um momento marcante na última década foi a retrospectiva sobre o trabalho do criador britânico Alexander McQueen (que morreu em 2010), que recebeu mais de 661 mil pessoas em 2011, no Costume Institute do Met — entrando, então para o top ten das exposições mais vistas do museu. A exposição era indicativa ao fazer a ligação entre a linguagem das artes plásticas, o design e a criação de moda. Passou ainda pelo V&A, onde também quebrou recordes.
Algumas das posteriores mostras do Costume Institute (“China: Through The Looking Glass”, em 2015, e “Manus x Machina: Fashion in an Age of Technology”, em 2017) conseguiram entretanto destroná-la. É impossível olhar para o sucesso das exposições anuais do Costume Institute sem ter em conta a crescente dimensão da gala anual do museu, a Met Gala, que marca a inauguração de uma nova exposição, além de ser um momento de angariação de fundos para a gestão do museu. O factor celebridade tem um peso importante. “Talvez por necessidade, o Met Gala tem escalado para um espectáculo deslumbrante de celebridades, sob a liderança de [Anna] Wintour”, escreve a Vox. No ano passado, foram angariados 12 milhões de dólares para o Costume Institute.
Para Valerie Steele, directora de longa data do The Museum at the Fashion Institute of Technology, a mudança de paradigma da forma como os museus de arte olham para a moda vem muito de trás. “Nos EUA o ponto de viragem foi nos anos 1970 quando Diana Vreeland [ex-editora da Vogue] foi contratada como consultora especial do Metropolitan [em 1972] porque trouxe uma sensibilidade de moda ao que tinha sido até então uma visão de antiquário”, defendeu, em entrevista ao PÚBLICO, em 2015. “O mesmo aconteceu em Inglaterra um ano antes quando [o fotógrafo de moda e estrelas] Cecil Beaton foi contratado pelo V&A para montar uma exposição. Antes disso era tudo cronológico, roupas de senhoras de classe alta, muito antiquado”, acrescenta, apontando para os dois momentos como principais impulsionadores.
O lugar da moda na arte
Ainda assim, a pergunta sobre o lugar da moda do mundo da arte persiste. É uma questão para a qual nem entre os próprios criadores de moda existe consenso. “Eu gosto de pensar que a moda é um pouco como a fotografia há 30 anos — era vista como algo industrial e popular, mas gradualmente as pessoas perceberam que alguns fotógrafos faziam arte”, defende Valerie Steele.
Mas se no passado a moda era desprezada como uma forma inferior de expressão, esse parece ser cada vez menos o caso. Ao mesmo tempo que blockbusters como o “Heavenly Bodies” atraem milhares, há também museus de artes plásticas a dar mais destaque à moda. Se o Met e o V&A têm núcleos que lhe são dedicados, o Museum of Modern Art (MoMA) não tinha uma exposição de moda há décadas, antes de em 2017 abrir ao público “Items: Is Fashion Modern?”, com cerca de uma centena de objectos que tiveram grande impacto no mundo. Mostrava, por exemplo, peças como as Levi’s 501s e o little black dress (um termo popularizado para referir um vestido preto).
Nesse mesmo ano, o Brooklyn Museum teve uma exposição centrada à volta do estilo da pintora norte-americana Georgia O’Keeffe (“Georgia O’Keeffe: Living Modern”). A artista “tinha sensibilidade para dar e vender”, aponta o New York Times. Sensibilidade essa que se manifestou não só no seu trabalho, mas também “quase tanto na sua apresentação — as roupas que usava, os sítios onde vivia e os móveis e objectos que continham”. Ou seja, “todos estes objectos formavam uma poderosa estética única”. “A tese subjacente desta exposição é que as roupas eram importantes, não apenas a arte, para Georgia O’Keeffe”, comenta Wanda Corn, curadora da exposição.
Em 2018, o V&A incluiu peças de vestuário de Frida Kahlo, bem como outras posses, numa exposição que pretendia oferecer uma visão mais intimista da artista mexicana.
Nem é preciso olhar muito longe para encontrar pontos de encontro entre as artes plásticas e a moda. Há seis meses Nuno Gama encheu o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) de modelos, para a sua apresentação da colecção de Primavera/Verão. Sem que essa fosse a intenção do criador, a exposição obrigava o público a fazer a ligação entre os trajes e as pinturas e esculturas da colecção permanente do museu. Algumas das peças mais exuberantes, por exemplo, enchiam a sala com imagens da corte de Dona Leonor e, no lado oposto, três modelos de smoking guardavam obras de Josefa de Óbidos. “Queria compartilhar esta energia que sinto. Cada vez que cá venho saio com ideias novas e coisas a borbulhar”, explicou então o criador ao PÚBLICO.
“Existe uma ligação natural entre este museu e todas as áreas de criação. É uma espécie de fonte de manancial onde os artistas contemporâneos vêm beber”, comentou por sua vez António Filipe Pimentel, director do MNAA. Nessa altura, o museu preparava-se para a abertura de uma sala que veio dar um espaço “semi-permanente” às mais de 4600 peças de arte têxtil em acervo. A nova galeria tem aliás como padrinho o próprio Nuno Gama — da mesma forma como a exposição de mobiliário foi apadrinhada pelo arquitecto Siza Vieira. “Tudo surgiu ao mesmo tempo — os fios cruzam-se”, explica Pimentel.
Não foi a primeira vez que o museu se cruzou com o mundo da moda. Em 2011, o MNAA e o Museu do Design e da Moda (Mude), também em Lisboa, trocaram uma série de peças, criando uma dupla exposição, que colocava em contraste as peças clássicas do primeiro com os objectos contemporêneos do segundo. Colocava, por exemplo, uma túnica de Issey Miyake em cetim de poliéster dourado e plissado ao pé dos biombos Namban japoneses, com o dourado de uma a confundir-se com os dourados dos outros. “Queremos desconstruir paradigmas”, explicou na altura António Filipe Pimentel ao PÚBLICO.
Segundo Bárbara Coutinho, directora do Mude, “o projecto nasceu da vontade de olhar para os dois acervos e encontrar temas de ligação”. “Queríamos perceber se havia continuidade entre a contemporaneidade e a antiguidade, entre o design e as artes decorativas.”
O Mude encerrado desde 2016 para obras de requalificação integral do edifício de oito pisos, embora mantenha uma programação com o Mude Fora de Portas, em 2013, teve uma exposição dedicada ao criador português Felipe Oliveira Baptista — que até ao ano passado foi director criativo da Lacoste — tornou-se a mais vista de sempre do museu (inaugurado em 2009), chegando o seu período de abertura a ser prolongado.