A inocência entre a violência, a indecência e... a competência
Mal estará a sociedade se perder a confiança na independência e competência dos tribunais, e muito concretamente na competência dos juízes.
Violência
“A presa sou eu, não é ele. O meu ex-marido pode ir tomar café onde quiser e eu não.” Ouvia isto, há dias, na televisão, de uma mulher escondendo a cara.
Tinha sido vítima de uma agressão do ex-marido que, a soco, lhe rebentou o tímpano. Fez queixa dele à polícia e, na sequência disso, em primeira instância, o tribunal decretou ao agressor o uso de uma pulseira electrónica, por certo, muito para manter sob controle a sua aproximação à agredida.
Contudo, o agressor recorreu e o Tribunal da Relação do Porto revogou essa decisão de primeira instância (argumentando com factores que, pelo que se percebe, têm a ver com incompetência jurídico-processual nessa primeira decisão) e mandou retirar-lhe a pulseira electrónica.
Desde então, a vítima vive escondida, dizendo-se com medo de sair à rua e ser (novamente) agredida (até porque diz já ter recebido ameaças através de familiares) ou de que o agressor descubra a sua morada actual. E daí o lamento inicialmente citado.
Esta é (mais) uma forma da violência (porque consequência violenta, no mínimo, mental e emocionalmente) associada à que chamam (inclusive a lei) de “doméstica”, o que é lógico por ser caracterizada por agressões de pessoas com quem a vítima tem ou teve uma relação afectiva ou, mesmo, vive em comunhão de habitação.
Outra associada forma de violência (porque também consequência violenta) “doméstica” é a das crianças, algumas de tenra idade, que muitas vezes assistem à agressão (se não ao assassínio), muito embora, legalmente, nem sequer sejam, nesse âmbito, consideradas vítimas.
Ou a das crianças que, mesmo não assistindo à agressão, são deixadas órfãs, a sofrer a morte das mães em contexto de violência doméstica, crianças ou em geral menores que, segundo o Instituto de Apoio à Criança (IAC), são, neste momento, cerca de mil.
Crianças que, assim, – violência chocante – com seis ou sete anos, se tornam, pelo permanente sofrimento (ainda que mudo), um “adulto de 20 anos”, citando um responsável do IAC, se tornam um “adulto em miniatura”.
Sim, estas e outras são as violentas consequências da “pura e dura” violência doméstica” que, este ano, já levou à morte, assassinadas, 10 mulheres e uma criança, expressão mais dramática de um quadro cujos registos se têm vindo a agravar: em 2017, as forças de segurança registaram 26.713 ocorrências de violência doméstica; em 2018, morreram 28 mulheres por agressão “doméstica”; desde 2004, já se contam 503 homicídios conjugais. Entre 2010 e 2017, verificou-se uma média de 20.000 participações de violência doméstica por ano às autoridades policiais. Mas o que é grave é que para além da formalidade (“papelada”) dessas participações, em 14 anos, por violência doméstica, houve mais de 600 tentativas de homicídio e, neste âmbito, morreram 472 mulheres.
Indecência
Outra forma de violência que, no sentido atrás referido, também é muito “doméstica”, é o abuso sexual de crianças. Uma forma de violência cuja perversidade se destaca pela indecência, no sentido mais pejorativo e repugnante que se queira conferir a esta palavra.
Sendo certo que muita, mas mesmo muita, coisa aconteceu desta ordem em que não houve constituição de arguidos ou, sequer, as situações passaram pelo crivo dos tribunais (ou até do conhecimento de alguém), dá uma ideia da dimensão desta violência indecente (ou indecência violenta) que, em 2016 (último ano para o qual há dados conhecidos tendo como fonte o Ministério da Justiça [1]), houve a constituição de 366 arguidos por abuso sexual de crianças.
Inocência
Estas formas de violência e indecência, para além do quanto revolta a brutalidade da agressão física, mental e à dignidade de pessoas, é ainda mais revoltante porque, objectivamente, os agressores, cobardemente, se aproveitam da inocência das vítimas.
Da inocência da esposa ou companheira que, inocentemente, acreditou que alguém com quem teve uma relação afectiva (ou, mesmo, viveu em comunhão de habitação durante largos anos) não seria alguma vez capaz de a agredir, quanto mais de a matar.
Da inocência, ainda, da vítima que acreditou que, depois de agredida, o agressor se arrependeria, se regeneraria e, nesse crença (eventualmente esperança, admita-se que negação da realidade), não apresentou queixa às autoridades ou, tendo-a apresentado, veio depois a retirá-la.
Da inocência de quem, vítima, acreditou que as autoridades e os tribunais a protegeriam com eficácia e prontidão depois de a essas autoridades e tribunais ter recorrido. E mais ainda de quem acreditou que isso muito menos lhe poderia (novamente) acontecer depois de o agressor ter sido sinalizado e caracterizado como tal pelas autoridades policiais e, por maioria de razão, depois de ter sido condenado por esses tribunais.
Da inocência das crianças, óbvia e naturalmente inocentes, tanto mais inocentes nestas situações quando os seus violentos agressores são, muitas vezes, pessoas das suas relações, alguns familiares mesmo, enfiam, pessoas em quem, ainda mais inocentemente, confiam.
Competência
Para além de outro tipo de análises (clínicas, sociológicas, históricas, políticas...), é legítima exigência e não inocência supor que, sendo estas situações caracterizadas legalmente como crimes, as autoridades policiais e os tribunais sejam suficientemente formados, informados, qualificados e humana e socialmente sensíveis para, com as regras (leis) e meios ao seu dispor, lhes responderem, tendo em vista os valores humanos e sociais em causa.
Isto, num ponto de vista de criação de exemplaridade e pedagogia, enfim, de confiança e prevenção social visando o “efeito preventivo da pena”. E também visando a promoção e concretização das medidas de protecção das vítimas.
Porque, se tal não acontecer, o que resulta da sua (in)acção é a contraproducência de ser fomentada a falta de confiança social na Segurança Pública e na Justiça . E, daí, por descrédito na eficácia e prontidão dos respectivos serviços públicos, a inibição ou mesmo o medo de denúncia e testemunho destas situações por parte das vítimas e testemunhas. E, tão ou mais grave, a acentuação da sensação de impunidade nos (dos) agressores.
Contudo, sabe-se que se em 2017 foram registadas pelas autoridades policiais 26.173 ocorrências como “violência doméstica”, dos 29.711 inquéritos crime finalizados no mesmo ano, 20.470 foram arquivados, tendo sido deduzida acusação somente em 4465 e, destas acusações, apenas 723 condenações resultaram em cumprimento de pena efectiva.
E sabe-se também que, no caso de abuso (violência) sexual de crianças, dos 366 arguidos, apenas 276 foram condenados e, destes, só 79 a cumprimento de prisão efectiva.
Vai por aí forte indignação pública contra os juízes por, para além de outras razões adiante referidas, dados estes números, também a eles (há, é certo, muitos outros factores) lhes ser atribuída responsabilidade pela inadmissível situação de crescimento dos registos em Portugal deste tipo de crimes.
Claro que não é apenas por isso mas também por ter vindo a público, com explosão de divulgação mediática, que alguns juízes, nas sentenças que proferem neste domínio, utilizam chocante argumentação (incluindo a Bíblia, pelo menos num caso, uma sentença de um juiz da Relação do Porto). Indignação que se compreende, inclusive do ponto de vista de cidadania, não apenas porque, a pressupor-se ser garantido que “os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo” [2], absurdo seria que o “povo” não se interessasse quanto a se tal garantia está, ou não, a ser concretizada.
Mas também porque, mais concretamente no caso da tal sentença que desencadeou esta (socialmente saudável) maior atenção para a violência doméstica, daí restou na sociedade a ideia de que tal argumentação foi utilizada porque considerada determinante na decisão (que absolveu o agressor).
Ora, tal argumentação, pelo menos para a sociedade em geral, para o “povo”, é sentida como indiciando um certo olhar da Justiça desvalorizador da gravidade e mesmo desresponsabilizador deste tipo de crimes. Logo, socialmente sentido como antipedagógico e, mesmo, como potencialmente inibidor da denúncia e testemunho destes crimes, bem como, de facto, gerador de desprotecção das vítimas. E, relacionadamente, como acentuador da sensação de impunidade dos agressores.
De qualquer modo, muito mais do que tem acontecido, esta forma de violência, se bem que legalmente (agora) seja considerada “crime público”, carece de (ainda) mais veemente condenação social.
Admita-se que, nos últimos tempos, ainda que por más razões (a que os tribunais não são alheios – “há males que podem vir por bem”), cresceu o debate social sobre estes crimes e, associadamente, sobre a eficácia e prontidão repressiva e preventiva da resposta que a Justiça lhe tem, ou não, dado.
Aliás, não é apenas a sociedade em geral (o “povo”) a reagir quanto à existência, ou não, da tal “competência” dos tribunais para, neste domínio, “administrarem a justiça” em seu nome.
Há também, mesmo dentro do sistema de Justiça, entidades e pessoas qualificadas e autorizadas a considerar a necessidade do debate e reflexão social, para além de medidas concretas, nesta matéria.
Por exemplo, o Conselho Superior de Magistratura, quando considera tais mensagens constantes de sentenças judiciais (concretamente, pelo menos de uma, mas que pode ser um sinal para outras) como “ofensivas, desrespeitosas e atentatórias dos princípios constitucionais e supraconstitucionais da dignidade e da igualdade humanas”.
Ou o Bastonário da Ordem dos Advogados, quando afirma publicamente que muitas decisões judiciais no âmbito da violência doméstica e, por associação, do direito da família especialmente quanto às crianças, “não são conformes aos princípios da Constituição da República”.
Ou, ainda, a coordenadora do Observatório da Justiça da Universidade de Coimbra, quando afirma que nos tribunais estas situações “precisam, de uma outra sensibilidade, um outro olhar”.
Enfim, compreende-se., tem que se compreender, que haja quem fique chocado por ver na aplicação da Justiça a perversa contradição entre, por vezes, uma deriva justiceira (já vimos a severidade com que foram punidas pessoas que roubaram chocolates em supermercados...) e, noutros domínios, como neste, de acrescidíssima gravidade, de atentados à integridade física, à vida, à dignidade e à liberdade pessoal, sentir nos tribunais um excesso de desvalorização judicial da gravidade destes actos, o que, de facto, é interpretado como objectiva contemporização com a sua prática.
Quem fique chocado por esperar da aplicação da Justiça, tendo em conta os valores humanos e sociais em causa, uma mensagem de exemplaridade relativamente à defesa desses valores e se angustia e revolta por “não poder ignorar” o que muitas vezes “vê, ouve e lê” dos tribunais, pelo conteúdo, pela (falta de) prontidão, pela (in)eficácia das suas decisões: uma mensagem de acentuação da sensação de impunidade relativamente à agressão a esses valores.
Enfim, quem fique chocado por sentir que, eventualmente pela tal falta do tal “outro olhar” de que, a Justiça carecerá (pelo menos) sobre este tipo de situações, por um lado, há o risco de imperar nas decisões dos tribunais apenas o “olhar” (muito) pessoal de cada juiz (ou até de um colectivo de juízes), um olhar (demasiado) enformado pela(s) suas mundivisão(ões) da vida e da sociedade.
E, por outro lado, no extremo, o risco de, na (demasiado) “estrita” aplicação da lei, o real da(s) realidade(s) do “povo” não ser efectivamente considerado, de algum modo, o risco de, da lei, o texto ser pretexto para desprezar o contexto, o risco de a “letra da lei” degenerar na “lei” (só) da letra.
De qualquer modo, mal estará a sociedade se perder a confiança na independência e competência dos tribunais, e muito concretamente na competência dos juízes, dada a carga de (constitucional) importância e responsabilidade técnica e social que essa especial competência carrega.
Sim, mal estará a sociedade, o “povo”, quando, generalizadamente (e, daí, o risco de se generalizar para os tribunais em geral a partir de casos pontuais de incompetência judicial), duvidar disso, na medida em que sem essa especial competência (que, no fundo, consubstancia algo de essencial na Justiça, um “direito, liberdade e garantia”) na aplicação da lei das regras que regem o seu funcionamento socialmente equilibrado, a sociedade entraria em colapso.
Nesta medida, é mesmo de pressupor que também (“até”) nestes acórdãos por aí badalados na praça pública pelos mais variados meios, os srs. juízes foram competentes no referido sentido constitucional.
Que interpretaram e aplicaram a lei seguindo todas as devidas regras. Que, até, mais do que competentes, foram competentíssimos, aliás, em coerência com o deferente tratamento que, comummente, lhes é atribuído: “meritíssimos”.
O que pode ter havido é, quanto ao resultado no (para o) “povo” da assumpção judicial dessa competência, um “pequeno” pormenor, do ponto de vista de justiça (não confundir com aplicação da Justiça): terem-se engado. Terem-se enganado redondamente.
Ou seja, terem sido (são) competentes mas, apesar disso, enganaram-se, enganaram-se.
Não admira. Não apenas porque, sábio de séculos, “errar é humano”, mas também porque, como escreveu Paul Valéry [3], “ser competente pode ser enganar-se seguindo as regras”.
O problema é que, daqui, o que de facto pode resultar para a sociedade, para o “povo”, é, como decorre do que precede, ficar a inocência entre a violência, a indecência e... a competência.
[1] Via PÚBLICO de 27/9/2018 –“Só 37% dos condenados por violência sexual vão para a pisão” - https://www.publico.pt/2018/09/27/sociedade/noticia/so-37-dos-condenados-por-crimes-sexuais-cumprem-pena-de-prisao-1845394#gs.CJUUOGfQ
[2] N.º 1 do Art.º 202.º da Constituição da República Portuguesa
[3] França, 30/10/1871 -20/7/1945