Democracia de qualidade
Apenas uma sociedade civil forte poderia ter evitado esta partidarização asfixiante. Mas Portugal não tem, nem nunca teve, tal sociedade civil.
1. A progressiva transformação, em Portugal, da democracia em partidocracia não se pode dizer que tenha sido surpreendente. Era, talvez até, inevitável. Os regimes anteriores, com maior ou menor pendor democrático, sempre se caracterizaram por dois aspetos – predomínio de uma clique endogâmica em Lisboa (a Corte), fruto de um processo de seleção cooptado e não competitivo, e o caciquismo local. Seria, pois, difícil esperar que o regime atual, para mais já longevo, não refletisse essa realidade.
É possível que a introdução de candidaturas independentes e a limitação de mandatos logo em 1976 pudessem ter suavizado um pouco, mas a opção por um governo local presidencial forte, sem grandes estímulos à oposição (estranhamente parte da própria vereação), sem grande controlo parlamentar, inevitavelmente reproduziu o caciquismo tradicional. Aliás, o desmantelar das forças vivas locais (fruto da modernização social) e a concentração de recursos públicos nos governos locais (através dos fundos comunitários e, depois, do galopante endividamento, que apenas foi limitado já bem entrado o século XXI) acabaram por recriar o ambiente para as redes clientelares locais, que acabam por ser uma face pós-moderna do caciquismo do século XIX. Não por acaso, a grande maioria dos municípios é governada pelo mesmo partido por períodos longos e os dinossauros autárquicos são figuras mitológicas dos partidos. E sobre as regiões insulares basta observar a durabilidade política – o PSD governa na Madeira desde 1976; já nos Açores temos maiorias monocolores do PSD (1976-1996) e do PS (desde 1996).
Quanto ao Estado central, depois do período de transição imposto pela revolução, os longos tempos de governação do PSD com Cavaco (1985-1995) e do PS com Guterres (1995-2002) permitiram aos dois partidos criar o seus Estados-clientelares, que se reproduzem legislatura após legislatura. Inicialmente os dois partidos colonizaram a administração pública e o setor empresarial do Estado (com o “centrão dos interesses”). Com a estabilidade inédita do regime democrático, a concentração de riqueza no Estado central e a estagnação económica dos últimos 20 anos, os partidos acabaram por estender os seus tentáculos para os corpos do Estado que deviam estar mais isolados das agendas partidárias – os diplomatas (com a confusão entre a carreira e os lugares de nomeação política no MNE), os militares (com as promoções dos oficiais generais decididas no Conselho Superior de Defesa Nacional, influenciadas pelos partidos, e as assessorias nos gabinetes políticos), os magistrados judiciais e do Ministério Público (com as comissões de serviço e também as assessorias nos gabinetes políticos), os reguladores (hoje assumidamente dominados pelas escolhas dos aparelhos partidários do PS, PSD e CDS). Noutros casos, os partidos simplesmente desfizeram corpos de elite e transferiram os recursos públicos para sectores privados, onde se misturam os interesses dos partidos e os dos lóbis – a produção legislativa e a assessoria jurídica ao Estado são os exemplos mais óbvios.
Apenas uma sociedade civil forte poderia ter evitado esta partidarização asfixiante. Portugal não tem, nem nunca teve, tal sociedade civil. Mesmo pequenos passos na tentativa de, pelo menos, desacelerar a degradação das instituições acabaram por ceder à lógica implacável dos partidos. Veja-se a CRESAP. Uma boa ideia, mal implementada, hoje completamente inútil – nem a partidarização mudou, nem o mérito profissional das nomeações melhorou, nem os resultados ao nível da qualidade da administração pública são minimamente apreciáveis.
Não é fácil encontrar um contraexemplo ao caso português: uma sociedade fortemente hierarquizada, de riqueza concentrada, com um Estado central fortíssimo e interventor e sem sociedade civil que não acabe numa partidocracia asfixiante. Desse ponto de vista, portanto, parece-me que podemos discutir paliativos e analgésicos, mas não há grande solução sem uma sociedade civil forte (que os partidos, logicamente, combatem ferozmente).
2. A gerontocracia também não podemos dizer que surpreende. É herdeira direta da brigada do reumático. A História repete-se – uma geração chega ao poder cedo em virtude de uma revolução que afasta a geração anterior e depois não cede voluntariamente o poder à geração seguinte. Foi assim em 1926, foi assim em 1974. O aumento da idade média dos deputados e dos governantes até é provavelmente o sintoma menos grave. A presença dos “senadores” nas sinecuras dos regimes, nos estudos principescamente pagos, nos pareceres remunerados a preços internacionais, nos espaços públicos é um sinal muito mais evidente do fenómeno.
Poderemos dizer que, muito provavelmente, a gerontocracia portuguesa até é menos aguda que a italiana ou a grega. Mas é uma gerontocracia que pesa nas rendas e pouco produz. Na verdade, na ausência de uma cultura filantrópica ou de “give back”, não há fundações, não há centros de estudo, não há iniciativas privadas dos senadores, não há bibliotecas presidenciais (aliás, a única tentativa foi a Fundação Mário Soares e sabemos a crise em que se encontra). Mas, infelizmente, também aqui, dada a cultura predominante, não podemos esperar grandes mudanças. Pelo contrário – a profissionalização galopante da política criará, a prazo, mais “gerontocratas”.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico