(in)Justiça e violência doméstica
Este é um momento de oportunidade para tornarmos o nosso sistema mais eficaz e mais eficiente.
O ano de 2019 teve um início trágico. Em menos de dois meses, no âmbito do homicídio conjugal e de violência doméstica, morreram dez mulheres e uma menina.
Estes acontecimentos do início do ano têm chamado a atenção da opinião pública para as falhas constantes do sistema sobre os casos de violência doméstica, e muito em particular daqueles que conduzem à morte. Há um sentimento coletivo de impunidade, de ausência de apuramento de responsabilidades quando há erros nas decisões, em particular nos casos que culminam em morte.
Os números falam por si: desde 2004 contabilizam-se 503 mortes por homicídio conjugal, em 2018 morreram 28 mulheres. Em 2017 foram registadas pelas forças de segurança 26.713 ocorrências e estiveram acolhidas em casas abrigo e respostas de emergência 3116 mulheres e crianças.
Apesar das participações às forças de segurança serem acima das 20.000/ano, as condenações com cumprimento de pena efetiva, entre 2010 e 2017, não ultrapassaram as 723 e, dos 29.711 inquéritos finalizados, 20.470 foram arquivados e apenas foi deduzida acusação em 4465.
Hoje não há dúvidas que o sistema falha demasiadas vezes. A Equipa da Análise Retrospetiva de Homicídio Conjugal em Violência Doméstica tem vindo a avaliar e a produzir relatórios sobre casos concretos que culminaram na morte das mulheres, e a apontar as falhas do sistema nestas situações.
Também começou a circular uma tese, defendida por alguns, de que é preciso alterar a lei para que as mulheres não possam recusar o depoimento invocando as relações familiares com o agressor, sendo a solução para que os casos não acabem arquivados. Esta tese aconselha cautela. Essa obrigatoriedade poderia levar à diminuição das queixas por parte das vítimas, o que não é de todo desejável e seria mesmo um retrocesso. O que precisamos é que as vítimas façam os depoimentos porque confiam na proteção do sistema, é aí que temos que investir.
É positivo que o Ministério Público esteja à procura de melhorar a sua intervenção, é muito positivo que tenha sido constituído um grupo de trabalho para avaliar a forma e os meios com que o Ministério Público atua, mas não devemos em nenhum momento retirar o foco na necessidade de articulação institucional. A estratégia para a violência doméstica é intersectorial, sendo por isso liderada pela Presidência do Conselho de Ministros.
É bom lembrar que em Portugal, nos últimos 20 anos, desde que o crime é público, tem sido a proteção social e as Organizações Não Governamentais quem no terreno tem protegido mulheres e crianças e tem garantido respostas técnicas especializadas. Também as Forças de Segurança têm feito um caminho positivo na resposta às vítimas, que precisa de ser reforçada e melhorada na articulação com o Ministério Público e com a rede de parcerias.
Há uma conclusão a que as Instituições chegaram sob pressão da calamidade do início do ano. Perante estas mortes que chocaram e perturbaram o país, foi realizada uma reunião entre membros do Governo das pastas implicadas, a procuradora-geral da República e as Forças de Segurança, tendo saído o compromisso de criar Gabinetes de Apoio às Vítimas nos DIAP e uma melhor e mais eficaz resposta nas primeiras 72 horas após a queixa. Esta prerrogativa não é novidade, está na lei desde 2015 e a verdade é que a sua aplicação não tem sido utilizada pelos magistrados, deixando as mulheres após a denuncia desprotegidas e em fuga das suas casas e das suas vidas.
Foi também anunciada a constituição de uma equipa pluridisciplinar que coordene a intervenção, liderada pelo mesmo procurador que coordena a análise retrospetiva do homicídio em violência doméstica. Talvez fosse mais sensato separar as águas, porque esta dupla coordenação pode retirar eficácia a uma das equipas.
Este é um momento de oportunidade para tornarmos o nosso sistema mais eficaz e mais eficiente no combate à Violência Doméstica e de Género, devendo a proatividade do Ministério Público ser saudada, mas sempre acompanhada pelo reforço do trabalho em rede que tem sido alargado no território, com especial atenção ao interior onde existem menos recursos, para responder atempadamente e com eficácia às vítimas.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico