Marc Ribot: "Quando Trump foi eleito senti a necessidade de agir"
YRU Still Here? é Marc Ribot e os seus Ceramic Dog em modo zangado e visceral, activo e activista. Verdadeiro álbum-combate, aquele que o guitarrista apresentará este domingo no GNRation, em Braga
Em Abril de 2018, Marc Ribot lançou o terceiro álbum da discografia dos seus Ceramic Dog, trio que mantém desde há uma década com o baixista Shahzad Ismaily (Secret Chiefs 3, John Zorn, Bonnie Prince Billy, Lou Reed) e o baterista Ches Smith (Secret Chiefs 3, Mr. Bungle, Xiu Xiu, John Zorn). Depois de Party Intelectuals (2008) e de Your Turn (2013), o combo, habilíssimo e fervoroso na abordagem a um rock nada canónico, de vertigem punk e pulsar exploratório, editou YRU Still Here?, disco mais fervoroso e mais zangado que os anteriores, verdadeiro álbum-combate.
Poucos meses depois, em Setembro, Ribot revelou as suas Songs of Resistance 1942-2018. Rodeado por nomes como Tom Waits, Steve Earle, Tift Merritt ou Meshell Ndegeocello, recriou canções activistas de outros tempos e de outras latitudes e compôs novas canções para um mesmo activismo no presente. Da Guerra Civil espanhola à 2ª Guerra Mundial, do movimento dos direitos civis ao presente em que ressurgem novos fantasmas de velhos fascismos e xenofobias.
O guitarrista de 64 anos, nome fundamental da vanguarda norte-americana, homem com Lounge Lizards, Tom Waits, John Zorn e mil outros no currículo, vive um momento particularmente agitado. Ao Ípsilon, diz o que o momento actual exige acção e resposta. É assim, agitado, frenético, sem conter as palavras que tem presas na garganta – “I got the right to say fuck you!”, assim arranca YRU Still Here? - que o ouviremos este domingo, dia em que regressa a Portugal para um concerto no GNration, em Braga (17h30, 12€).
Marc Ribot é homem que sabe bem o que quer tocar e o que tem a dizer, mas isto de se dividir por mil projectos tem as suas consequências. “Desculpe, mas ainda não olhei para o meu itinerário. Estou em digressão com Songs Of Resistance e com os Ceramic Dog. Pode dizer-me com qual tocarei em Portugal?”, pergunta Ribot no arranque da entrevista com o Ípsilon. Dúvida esclarecida, Ribot está preparado. “Assim sendo, já sei onde estarei e o que irei fazer. É um bom princípio”.
Está em digressão com Ceramic Dogs e Songs of Resistance, grupos diferentes que originaram álbuns diferentes, mas que confluem num ponto. Em ambos, a manifestação da necessidade de agir politicamente através da música. Como músico, sentiu que era obrigatório fazê-lo agora?
Não acho que um artista tenha de se envolver politicamente em todos os momentos e acredito que há muitas formas diferentes de o fazer. Algumas pessoas lançam a sua raiva contra o sistema, outras pessoas revoltam-se contra a linha de montagem ou contra o sistema tonal - e isso também é o sistema. Podemos considerar a falta de pensamento e reflexão o sistema contra o qual temos que nos revoltar e podemos combatê-lo encorajando as pessoas a envolverem-se na música enquanto pensamento e não como uma coisa que te ajuda a tornar mais agradável um dia de trabalho. Dito isto, quando Trump foi eleito, senti a necessidade de agir politicamente.
Tanto que YRU Still Here?, o álbum que traz a Braga, foi regravado após a eleição.
Não regravámos todo o disco. Gravámos uma série de coisas novas e alterámos algum do material. Senti que o mundo podia esperar um pouco por mais um CD sobre mim a discutir com a minha namorada - infelizmente, o mais provável é que acabe mesmo por fazer esse disco, assim que passe a crise actual. O que me fez sentir tão zangado? Bem, podemos começar pelo facto de Donald Trump não acreditar que existe intervenção humana no aquecimento global e pelo facto de eu ter uma filha de 22 anos que, se os cientistas estiverem correctos, pode vir a testemunhar o fim da civilização. Para algumas pessoas, isso até pode parecer um bom cenário, mas eu estive em partes do mundo em que tudo colapsou… Conhece o livro do Paul Bowles, O Céu que nos Protege? É sobre pessoas que pensam que querem descobrir verdadeiramente a natureza, que querem desvendar o outro. Quando o conseguem, são dilaceradas pelo que descobrem. Não me parece que aquilo que os cientistas dizem estar a aproximar-se seja uma coisa bonita. Tenho uma coisa em comum com o Donald Trump, que é ambos desejarmos que os cientistas estejam errados. Mas eu acho que qualquer pessoa que esteja disposta a apostar a vida dos seus filhos em como os cientistas estão errados, é um louco que precisa de ser parado. Portanto, isso foi uma das coisas que me deixou muito irritado. Mas há mais. Sou judeu e nasci depois da 2ª Guerra Mundial, mas os meus pais perderam amigos e familiares no Holocausto. Podia iniciar uma longa discussão sobre se Donald Trump é de facto fascista, proto-fascista ou populista, mas senti, desde o início, ter reconhecido um nele. Infelizmente, não estamos a falar apenas dele. Ele faz parte de um fenómeno mundial que é perigoso e que tem que ser enfrentado.
É o que nos parece dizer em YRU Still Here?. Não há tempo para tentar discussões polidas, não se pode desvalorizar. “I got the right to say fuck you!”, canta na primeira canção do álbum, Personal Nancy.
É engraçado que refira precisamente essa canção.
Sei o que me vai dizer. Personal Nancy começou por ser uma canção sobre a sua namorada.
Exactamente (risos). E é uma canção, em si, muito politicamente incorrecta. O título original era You’re my personal Nancy Spungen [namorada de Sid Vicious, baixista dos Sex Pistols]. Depois de a editarmos, pensei, ‘meu Deus, acabei de lançar uma canção satírica sobre uma pobre mulher que foi assassinada’. Apesar de se dizer nas ruas que não foi realmente Sid que a matou, mas o dealer de ambos - tenho fontes credíveis que mo confirmam. De qualquer forma, é uma canção que me deixou com uma sensação estranha e acho engraçado que todos a interpretem como uma canção política. Talvez seja. Que sei eu? Eu nem sei com que banda vou tocar a Portugal (risos).
A música de YRU Still Here?, no seu espírito zangado, na intenção musical, faz-nos pensar no punk e na no wave nova-iorquina dos anos 1970, também eles tempos de crise e tumulto. Sente semelhanças entre as duas eras? Podem ser essas semelhanças que conduzem a um espírito musical semelhante?
Bem, nunca julguei que chegássemos a um ponto que fizesse o Ronald Reagan parecer bom. Quanto a soar à no wave, só posso agradecer. Foi aí que encontrei o meu lar estético, quando tocava com os Lounge Lizards. Era e sou um rocker e também tenho interesse desde sempre em certos tipos de jazz, em Albert Ayler e Jack McDuff, vá-se lá perceber porquê. Ainda me sinto muito ligado àquilo a que chamam o som da no wave, à intersecção entre o rock, o punk e um certo tipo de jazz. Mas é muito complicado analisar a forma como a música é política. Há a camada daquilo que o cantor está a dizer, há a camada do que dizem a guitarra e a tarola da bateria e, depois, há outro nível. Qual é a editora? Como foi pago o disco e como foi distribuído? As pessoas que o fizeram o álbum foram pagas? Quem é que tem acesso à gravação e quem é excluído? Também isso é político.
Personal Nancy foi livremente inspirada no standard I gotta right to sing the blues e o título Pennsylvania 6-6666 surge de Glenn Miller e do seu Pennsylvania 6-5000. Isto em YRU Still Here?. Depois chegou Songs of Resistance, que nos interpela a aprender com o passado e nos diz que, na realidade, o passado não é passado, está aqui, agora. Esse diálogo entre eras é importante para si?
Acabou de pôr a coisa de uma forma muito simpática. Obrigado por não me chamar um pós-modernista (risos). A minha avó foi na juventude uma flapper [a geração de jovens mulheres que, na década de 1920, ao som do swing, se emancipavam no vestuário, na linguagem, no comportamento social] e falava sempre com citações de canções pop dos anos 1920. Eu não apanhava nenhumas das piadas, mas percebia que ela falava numa espécie de código. Gosto de fazer o mesmo. Sinto que quando estou a tocar e a compor estou também a falar para o passado, para outras canções e para outros músicos.
Tem esse diálogo entre tempos, tem a abordagem do contexto político em abstracto, como em Muslim jewish resistance, mas os Ceramic Dog fazem questão de mostrar que aquilo de que falam é real, que afecta pessoas reais. Pennsylvania 6-6666, canção sobre racismo e supremacistas brancos, é, basicamente, um relato da vida de Shahzad Ismaily enquanto filho de imigrantes.
O Shahzad nasceu nos Estados Unidos, mas a sua família é paquistanesa. Imigraram pouco antes de ele nascer e viviam numa parte da Pennsylvania onde não havia muitos imigrantes, certamente não muitos paquistaneses ou famílias muçulmanas. Por essa e por outras razões, como os problemas de saúde que teve em miúdo, passou por muito enquanto crescia. A escola foi terrível para ele e cresceu num ambiente hostil, mau. Ele contou a história e eu tentei pô-la em palavras que rimassem.
A inclusão de motivos musicais do Médio Oriente, de África ou da América Latina nas canções é, obviamente, resultado de uma exploração que vos entusiasma enquanto músicos. Neste contexto de medo e ódio perante o outro, o diferente, também será uma afirmação com o seu quê de político, imagino.
Diria que sim, mas também diria que só fizemos isso porque nos soou bem. Só estávamos a tentar compor qualquer coisa que rockasse a sério. Portanto, sim, o que diz é verdade, mas é preciso assinalar que tanto eu como o Shahzad crescemos nos Estados Unidos a ouvir rock’n’roll. Durante um período fiz parte daquilo a que o [John] Zorn chamou a “radical jewish music”. Toquei montes de escalas klezmer, mas antes nem sabia o que era aquilo. A primeira vez que ouvi uma foi numa banda sonora para um filme da Chantal Akerman em que toquei com o Roy Nathanson. Ele disse que devíamos tocar um klezmer e eu perguntei-lhe o que era isso – e já tinha uns 30 anos. Sou muito céptico da ideia de raízes. Não sou uma planta, não tenho raízes. Prefiro pensar em afectos. Identidades? Muito bem, seja. Podemos escolher com o que nos queremos identificar. Portanto, em resposta à sua pergunta, sim e não.
Pela sua experiência, que efeito real pode ter a música naqueles que a ouvem? Ou melhor, que efeito tem esta música dos Ceramic Dogs no público que a ouve num concerto? E que efeito gostaria que tivesse?
Não é ter gravado um disco com conteúdo político que trará uma grande mudança, mas acredito que, por vezes, a música pode ajudar a dar coragem às pessoas e lembrar-lhes que não estão sozinhas. No Songs of Resistance fizemos uma versão de We are soldiers in the army, uma canção do movimento dos direitos civis dos anos 1950 e 1960. Era cantada tradicionalmente quando os activistas estavam a ser presos. “We are soldiers in the army / we have to fight / We also have to cry”. O que conseguiu esta canção? Deu às pessoas coragem, por cantarem juntas e por saberem que aqueles que estavam na prisão ou na carrinha da polícia os conseguiam ouvir. Fazia-as sentirem-se menos sozinhas. Quando agora canto uma canção como essa ela é também uma lembrança de que não estamos sozinhos na história, que temos amigos, grandes pessoas, que a atravessam.