Carta ao casal de pandas da minha escola primária
Como é que os pandas hão-de ter um rancho de crias quando têm meio mundo em cima deles a dizer “Vá, namorem, façam coisas”?
Caros Sérgio e Rita,
Ainda me lembro do dia em que vos encostámos aos muros da escola, como caçadores furtivos a dois animais assustados. Queríamos à viva força que vocês se beijassem ali ao pé dos pedregulhos, ao fundo do campo de futebol. Vocês queriam privacidade, mas não estava fácil, uma vez que, para onde quer que fossem, a turma inteira ia atrás a gritar “Beija, beija!”. Se vos tivéssemos perseguido em caravana de jipes descapotáveis, com holofotes apontados e binóculos ao ombro, ao estilo safari, não teria sido pior. Ainda bem que vocês não tinham um corno na ponta do nariz, senão estavam tramados.
O vosso olhar de semipânico era uma pista de que algo não estava bem. Mas nós continuávamos, porque estávamos eufóricos, descontrolados. Vocês eram o mais próximo que tínhamos visto de um casal de namorados a sério e achávamos que iam satisfazer toda a nossa curiosidade no que ao amor diz respeito: “O que é isso de ser namorado? É dar a mão, beijar? Como? E para quê?”
Hoje em dia, olho para o meu filho e vejo que podia ter resolvido estas questões de uma forma prática, porque ele com sete anos disse-me que tinha quatro namoradas na escola, e eu perguntei-lhe, “Ai é? Há quatro meninas que gostam de ti?”. “Não sei.” “Não sabes?” “Não.” E a conversa acabou aqui, porque percebi que ele tinha passado directamente da fase dos amigos imaginários para a das namoradas imaginárias e vivia bem assim. Era um pouco indiferente se tinha quatro ou zero namoradas, porque o importante era jogar à bola e correr à volta da escola como um hámster numa roda. Mas eu não tinha estas soluções. Possivelmente porque era estúpido, pouco criativo. Queria respostas.
E vocês eram as nossas cobaias amorosas. Por outro lado, estávamos genuinamente a torcer por vocês. Queríamos muito que a vossa relação desse certo. Porque vocês tinham tudo para dar certo.
Tu, Sérgio, eras o mais alto da turma, o que para mim era o mais parecido com um adulto, logo o mais capaz de ter um relacionamento como deve ser. E tu, Rita, eras a rapariga gira e despachada, que usava calças de fato de treino com estrelas – nada de padrões lisos sensaborões –, e às vezes uma fita grossa na cabeça, como aquelas da aeróbica, o que te colocava num patamar de modernidade e desenvoltura muito acima do resto da turma.
Tínhamos grandes expectativas para vocês. O vosso plano de vida estava traçado, mesmo que não soubessem. Vocês iam casar-se e ser felizes para sempre, sem direito a divórcio ou a qualquer desvio deste plano maravilhoso. E para garantir o sucesso do vosso acasalamento estávamos dispostos a dar-vos o nosso apoio incondicional durante 24 horas por dia, se fosse preciso. O que neste caso se traduzia numa feroz turbamulta de bibe azul a encurralar-vos junto à vedação da escola primária – sim, usávamos bibe, lembram-se?
Eu sentia-me um bocado mal a fazer aquilo, mas fazia na mesma. Porque era criança e de alguma forma intuía que me era permitido fazer coisas parvas. Apresento-vos desde já as minhas desculpas por qualquer incómodo ou trauma causado.
Reconheço que o método de claque de proximidade não era o melhor. Acho que fizemos convosco o mesmo que se faz com os pandas-gigantes em cativeiro. Como é que os pandas hão-de ter um rancho de crias quando têm meio mundo em cima deles a dizer “Vá, namorem, façam coisas”? Eu também não sei se conseguia acasalar com a torcida dos Super Dragões ou dos No Name Boys à minha volta com palavras de ordem como “Campeões, olé, olé!” ou “Carrega, Benfica!”. Se calhar fazia como os pandas e perante os olhares estranhos e câmaras ocultas desatava a mastigar um rebento de bambu.
E vocês eram os nossos pandas, Sérgio e Rita. Eram fofos e a vossa vida amorosa estava a ser mais escrutinada do que a dos concorrentes da Casa dos Segredos. Talvez fosse pressão a mais, mesmo para os vossos ombros, que pareciam bafejados pela selecção natural. Não sei o que é feito de vocês. Espero que não estejam em cativeiro. Seja como for, é meu desejo profundo que tenham toda a privacidade de que necessitam. E o melhor bambu que a natureza já viu nascer.
Autor do blogue Gonçalve Jarco.