A família como ninho mas também como rampa de lançamento
Os filhos não são dos pais. Crescem para poder voar. Pode ser-se pai ou mãe toda a vida, mas há funções parentais com tempos determinados.
Muito se tem discutido sobre o declínio do papel da família. Será ainda a estrutura social que sustenta o desenvolvimento pessoal e social de indivíduos e sociedades? Também se tem assistido a uma transformação da família tradicional, que passou a coexistir com enquadramentos familiares outros, por exemplo, as famílias monoparentais, de casais homossexuais ou as famílias reconstruídas. Contudo, a família como estrutura social parece manter ainda alguns traços essenciais, tornando-a fundamental para que, desde tenra idade, possamos crescer, desenvolver, construir uma identidade.
A família, não obstante as suas variantes, é um espaço fundamental para o crescimento dos indivíduos. É o ninho. Dá protecção, acolhimento e, sobretudo, um ambiente afectivo propício e essencial ao desenvolvimento humano. É difícil crescer saudavelmente sem amor. O ninho constitui a base, o chão seguro, a confiança, a segurança. Mas é também entre muros que aprendemos a aceitar os limites, que vamos estabelecendo os valores e a moral, onde construímos a nossa ética. É também através dos mais próximos — pais, cuidadores — que vamos estabelecendo duas das funções mais importantes: aprender a ver o mundo e desenvolver um olhar sobre nós mesmos.
É através do olhar do outro mais próximo que começo a desvelar o modo de estar no mundo, e não menos importante, a ver-me, a desenvolver um sentimento de mim mesmo. O mesmo é dizer, construir-me como pessoa. Nas primeiras fases, no essencial existe uma relação mais hierárquica entre pais e filhos, com os primeiros a exercem um papel de maior referência, estabelecendo regras e valores, sem estes deixarem de ser aconchegados pelo afecto. Na adolescência, as articulações mudam, com dinâmicas muito desafiantes, tanto para jovens como para educadores. A entrada na vida adulta tece outros obstáculos. Em todas as fases, sabe-se que é necessário realizar ajustamentos. De parte a parte. Expresso em cliché: é um processo. Ajustes comportamentais, emocionais, das funções e papéis de cada membro da família.
Repleto de questões e incógnitas, o caminho do desenvolvimento pessoal poderá ser percorrido mais tranquilamente pelos pais, se for aceite que a perfeição parental é uma idealização. Os jovens, por sua vez, adiam a entrada definitiva no mundo do adulto. Apesar dos rituais de preparação, é por vezes uma porta difícil de trespassar, sobretudo, aceitando todas as suas consequências. Medos, receios, angústias, expectativas claras e outras mais implícitas adiam a passagem para uma outra fase da vida. Este momento tem naturalmente de ser preparado. Serão fundamentais as aprendizagens realizadas em estádios anteriores, para o jovem adulto se sentir confiante a avançar por novos caminhos.
Este momento de vida crucial é muitas vezes posto em causa pelos próprios pais. Na entrada da “adultice” dos seus filhos, os pais não são capazes de aceitar, compreender ou lidar com este novo momento. Os pais não realizam os ajustamentos necessários à fase de vida dos seus filhos e acabam por os acorrentar emocionalmente. Querem manter um registo de ninho quando este já se transformou ou deveria verdadeiramente ser uma rampa de lançamento.
Os filhos não são dos pais. Crescem para poder voar. Pode ser-se pai ou mãe toda a vida, mas há funções parentais com tempos determinados. Portugal está repleto de jovens adultos, ou homens e mulheres nas faixas etárias dos 30 ou 40, com vida estabelecida a nível familiar, profissional, social, que vivem numa prisão emocional. Estes filhos adultos não se sentem verdadeiramente livres. Não sentem legitimidade na sua liberdade psicológica. Sentem-se em falta. Por não serem tão presentes, por não estarem e agirem, como lhes fazem sentir que deveriam ser, estar e fazer. Uma dependência emocional dos pais, não dos filhos. Por razões várias, que passam por questões culturais ou aspectos de personalidade, pais ou elementos de uma família original promovem e mantêm uma dinâmica relacional que fomenta a culpa e a tristeza dos filhos adultos.
Limites não respeitados, exigências que alimentam o sentimento de estar em falta, ingerência nos assuntos de uma nova família constituída por um filho ou filha, expressões de sofrimento dos pais como se este fosse causado pelos filhos ou mesmo um silêncio ensurdecedor são exemplos que se constituem como correntes de ferro e que impedem uma verdadeira autonomia. O cordão umbilical psicológico não foi ainda cortado. Por parte dos pais. Mesmo em períodos muito adiantados do desenvolvimento pessoal dos seus filhos. E pode mesmo não existir a vontade de alguma vez o cortar. Se assim for, será então mais um desafio, ainda que por vezes sentido como enorme, para os filhos adultos ultrapassarem. Mais um obstáculo a transpor. Não depende no essencial de distâncias físicas, mas de capacidades emocionais que legitimem essa liberdade individual. E não depende de juízos de valor sobre os pais. Estes estão a lidar com a vida, com os momentos desta, consigo próprios, como conseguem.
Mais importante do que juízos é a capacidade de compreensão, um trabalho interior que diminui culpabilidades, um crescimento que assume as consequências de ser adulto e de estabelecer o seu espaço pessoal. Talvez caiba assim a estes adultos exercer a capacidade de mudança psicológica, que lhes permita viver em plenitude a sua autonomia, individualidade, identidade.