O Museu de Arte Antiga vai ter um Ticiano por três meses

É uma Maria Madalena Penintente e foi executada por volta de 1560 por um dos maiores pintores da Veneza do Renascimento. Nela se vê bem como Ticiano dava mais importância à cor e à pincelada do que ao desenho. Até 28 de Abril, mora em Lisboa.

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Esta Maria Madalena Penitente é uma das últimas versões que Ticiano pintou The State Hermitage Museum/Vladimir Terebenin

Seria um exagero dizer que de Marias está a Bíblia cheia, mas que é difícil saber quem é quem no meio de tantas figuras e de tão diversificados textos e narradores, lá isso é verdade. E quando se trata de Maria Madalena a leitura é ainda mais complicada. Isto porque aos textos e à interpretação que deles fazem os teólogos, e que naturalmente vai variando com o tempo, é preciso juntar as obras de ficção na literatura e no cinema que dela se têm vindo a ocupar, configurando e reconfigurando o seu papel, contribuindo para o seu "retrato" popular. Dito isto, há que perguntar: que Maria Madalena é esta que chega esta terça-feira ao Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa? Que ideia tinha dela o artista que a pintou assim, chorando, de olhos postos no céu?

Seja qual for a Madalena que o visitante encontre na próxima obra convidada do MNAA — uma pecadora arrependida, a favorita entre os discípulos, a primeira testemunha da ressurreição, a mulher de Jesus ou uma mistura destes e de outros rótulos —, o importante é que se deixe interpelar por ela e que se aproxime do seu autor, Ticiano Vecellio (c. 1488-1576), pintor oficial da República de Veneza e um dos mais importantes artistas do Renascimento italiano.

Esta Maria Madalena Penitente (c. 1560) que há 150 anos faz parte das colecções do Hermitage de São Petersburgo, museu que guarda uma das melhores colecções de arte da Europa, não é a única que Ticiano pintou – terá feito pelo menos cinco – mas é sempre apresentada como a melhor das suas versões deste tema religioso. “Nesta há uma maior intensidade dramática, quase trágica”, diz Miguel Soromenho, conservador de Arte Antiga, chamando a atenção para o rosto de Maria Madalena, aqui representada a meio corpo, com os longos cabelos sobre o peito coberto por um tecido muito leve, quase transparente, colado à pele.

Explica Soromenho que esta obra é típica do estilo tardio de Ticiano, que começa a pintar no início do século XVI com os irmãos Bellini (primeiro Gentile, depois Giovanni) e que depois, em boa parte graças a um primeiro impulso de Giorgione, importante pintor veneziano que terá morrido com pouco mais de 30 anos, acaba por construir uma carreira de grande sucesso, com importantes clientes no seu país (os duques de Mântua e Ferrara, por exemplo) e fora dele (o imperador Carlos V e o seu filho, Filipe II de Espanha).

Ticiano é o primeiro grande pintor veneziano com uma escala nacional e até internacional. O seu sucesso é tão grande que, quando morre, é um homem rico, que recebe uma tença de Filipe II para pintar, mesmo quando o rei não lhe encomenda nada em particular.” Soromenho fala em “estilo tardio” porque há nesta Maria Madalena que a partir desta terça-feira e até 28 de Abril se pode ver no MNAA “uma pincela nervosa”, uma “interligação dos elementos todos”, “um vaso e um crânio de contornos difusos” que sugerem as formas em vez de as definir.

Aliada a uma grande riqueza cromática, a pincelada mais larga e mais expressiva que viria a marcar a sua obra a partir, grosso modo, de 1530, é o que desde logo distingue, segundo Giorgio Vasari (1511-1574), o primeiro biógrafo dos artistas italianos da Renascença, a produção de Veneza da de Florença, onde o desenho, a linha, são vistos como a essência da pintura.

Jeito para o negócio

A paixão de Maria de Magdala, a pequena cidade da Galileia de onde era oriunda (de Magdala evolui depois para Madalena), é um tema que Ticiano pinta na segunda metade da vida, quase sempre a pedido de um encomendador. “Ele tinha um sentido de negócio moderno, era astuto e houve até quem lhe chamasse ganancioso”, acrescenta o conservador. “Sabia compreender as tendências do mercado e responder-lhes. Esta versão do Hermitage, por exemplo, tem uma paleta mais escura e mais dramática do que outras anteriores. É uma paleta que serve muito bem a intensidade da expressão desta mulher e a piedade típica do século XVI, mas há outra posterior [pertence à colecção do Museu Capodimonte, em Nápoles] que tem cores muito mais claras. Pode ter a ver com quem estava a encomendar…”

Por razões que se desconhecem, Ticiano conservou a versão que acabou na colecção do Hermitage em sua casa até ao fim. Diz a lenda que terá, aliás, morrido com a pintura nas mãos. Só cinco anos depois o filho Pomponio, com quem deixara de falar por causa de dinheiro, a vendeu a um aristocrata, Cristoforo Barbarigo, em cuja família ficou até 1850, ano em que passou a integrar o acervo do museu russo.

O que parece certo em todas as versões é que a Madalena que pintou é uma mulher pecadora, muito provavelmente a que na tradição tantas vezes é referida como a prostituta que Jesus terá salvado. Uma visão desta figura que está muito longe da difundida por alguns estudiosos da Bíblia e que a apresenta como uma mulher de posses a quem Cristo terá curado de uma doença mental e que, depois, põe tudo o que tem ao seu serviço e o segue.

Foi um Papa, Gregório Magno, que muito contribuiu para os equívocos que rodeiam esta figura bíblica quando erradamente identificou Maria Madalena, Maria de Betânia e a pecadora que unge Jesus com perfume como a mesma mulher. No Novo Testamento, Maria Madalena nunca surge como prostituta.

Na pintura de Ticiano, no entanto, o dramatismo extremado de Maria Madalena, diz Soromenho, sugere um acto de expiação: “Quanto maior o pecado, maior o esforço de redenção.” Um pedido de perdão que não impede o artista de explorar a sensualidade feminina: “Os seios tapados que são ainda mais sugestivos do que se estivessem descobertos, os braços nus, o cabelo solto a envolvê-la… O cabelo era uma coisa séria no erotismo do século XVI, basta pensar nas Vénus do Giorgione e do próprio Ticiano…”

Se Maria Madalena era ou não uma prostituta, se foi ou não a mulher que Jesus amou como homem, pode ser matéria de debate entre especialistas, mas o que parece consensual entre os que estudam os evangelhos e até mesmo os textos apócrifos é que é ela a primeira testemunha da ressurreição de Cristo, alguém que o segue incondicionalmente e que o coloca acima de todas as coisas.

“As pessoas podem ler o que quiserem neste olhar”, conclui Soromenho, “mas, tendo em conta a altura em que a pintura foi feita, o seu contexto, diria que esta é uma mulher que está a pedir desculpa pelos seus pecados”. Outros, crentes ou não, poderão ver nela a jovem amante do Cântico dos Cânticos, livro-poema do Antigo Testamento, a mulher que diz: “No meu leito, toda a noite,/ procurei aquele que o meu cora­ção ama;/ procurei-o e não o encontrei.”

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