Tribunal de Contas trava Matadouro por “ilegalidades”. Moreira vai recorrer

Tribunal diz que modelo da câmara para projecto do Matadouro configura uma PPP e não uma concessão. Há violação de regras do jogo, ausência dos princípios de lealdade, concorrência e transparência. Moreira fala em decisão “ideológica” e “exacerbar de competências”

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Matadouro é o projecto mais importante do executivo de Rui Moreira para o lado oriental da cidade Martin Henrik

Rui Moreira não esteve para meias palavras e classificou o chumbo do Tribunal de Contas ao seu projecto “game changer” para a cidade, a requalificação do antigo Matadouro Industrial do Porto, como uma decisão “ideológica” sem “fundamento legal ou constitucional”. Numa conferência de imprensa ao início da tarde desta segunda-feira, o presidente da Câmara do Porto avaliava a decisão do tribunal mesmo antes de ler o acórdão. A notificação da recusa do visto chegou à autarquia na sexta-feira, mas, segundo o presidente, só nesta segunda pelo meio-dia e meia, já depois da convocatória aos jornalistas ter sido feita, chegou a carta com a sentença. Por isso, quando questionado pelo PÚBLICO sobre os argumentos do TdC, Rui Moreira insistiu apenas que a decisão no último dia legal para o fazer era, em si só, “uma opção política” que causava “dano máximo” ao município. “Não é mania da perseguição. É apenas a objectiva apreciação daquilo que tem sido a intervenção”, acrescentou. Mas o projecto do Matadouro, sublinhou, não está morto. E o executivo vai recorrer.

Em jeito de resposta, uma nota do TdC enviada à comunicação social durante a tarde, quando o acórdão de 129 páginas foi publicado online, sublinhava que o tribunal se havia limitado a apreciar “a legalidade do procedimento e a violação de normas e princípios legais que impunham a recusa de visto, não tendo esse julgamento compreendido quaisquer juízos sobre conveniência ou oportunidade da decisão de contratação ou do modelo organizativo adoptado.” Vejamos, então, os diversos considerandos do tribunal e as "ilegalidades" por ele detectadas.

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Antes de mais, na análise exposta no acórdão, o modelo apresentado pela Câmara do Porto não configura uma concessão, mas sim uma Parceria Público Privada (PPP), devendo respeitar as regras estabelecidas no respectivo regime jurídico. O executivo de Moreira - a quem este problema foi sendo levantado nos pedidos de esclarecimento que por três vezes chegaram à autarquia - sempre contestou essa perspectiva. As implicações de uma PPP são diferentes das de uma concessão, nomeadamente na forma como é enquadrado no orçamento do município, na exigência de estudos sobre a partilha de riscos e as vantagens da obra ser pública. O estabelecimento da parceria, lê-se no acórdão, “deve implicar uma significativa e efectiva transferência de risco para o sector privado”.

O tribunal entende também que esta é uma concessão de obra pública e o respectivo concurso deveria, por isso, ter merecido outro tipo de publicitação. E deixa críticas duras. O TdC dúvida que o anúncio da empresa municipal GO Porto no Jornal Oficial da União Europeia seja uma “efectiva publicitação”, uma vez que a “informação [é] de tal modo incorrecta e/ou incompleta” que “não transmite os dados básicos que é suposto um anúncio conter [e] redunda numa verdadeira ausência de publicitação aos potenciais interessados no âmbito do mercado europeu.” Tal opção, acrescentam, implica uma “violação directa” dos “princípios fundamentais da lealdade e da concorrência, bem como dos princípios instrumentais da igualdade de tratamento, transparência e publicidade”. Ou, como refere noutro parágrafo, configura uma “violação de regras do jogo” com “transmissão de elementos erróneos com aptidão para afastar potenciais interessados no âmbito do mercado europeu”.

Mas há mais. No entendimento do TdC, a GO Porto, pelos seus estatutos, não poderia ter assumido as rédeas do assunto por não ter “os poderes necessários para lançar o procedimento relativo à concessão (abrangente de um período superior a 32 anos) nem para praticar os actos decisórios que assumiu nesse contexto”. Resultado? “Nulidade administrativa”.

Ainda antes de ler a argumentação, Rui Moreira deixava um apelo geral – “ao Governo, ao Parlamento, ao Presidente da República” – para que ajudassem a reverter o processo. Marcelo Rebelo de Sousa já se tinha colocado do lado de Moreira quando, há duas semanas, visitou o antigo matadouro, abandonado há já duas décadas. Assumidamente “apaixonado” pelo projecto com a assinatura do arquitecto japonês Kengo Kuma, em parceria com o gabinete OODA, o Presidente da República dava lastro ao seu lado optimista: "Tratemos de converter os ainda não convertidos”, disse, comparando a capacidade de mudança do projecto do Matadouro ao conseguido com a Expo 98 em Lisboa. "Legalmente, é preciso haver uma intervenção de uma entidade jurisdicional, o Tribunal de Contas, e espero que fique convencido no fim do processo." Para já, ainda não aconteceu.

Para Rui Moreira, há na decisão do TdC um “exacerbar de competências” e uma “intromissão inadmissível que põe em causa a soberania dos municípios”. As questões que foram sendo colocadas desde Agosto, quando o contrato foi enviado para fiscalização prévia, “falavam umas vezes sobre o modelo e outras sobre a opção [política]”, afirmou. “Chegamos a ser questionados sobre o por quê de o município do Porto querer colocar naquele local o Museu da Indústria.” E se a dúvida é a localização, Moreira devolve a retórica: “Então e ao contrário: achariam normal se vendêssemos aquilo?”

Este projecto – que teve como vencedor do concurso a Mota-Engil, que ali vai investir 40 milhões de euros, e cuja conclusão está apontada apara 2021 – é para Rui Moreira “uma questão da soberania da cidade” e a aposta crucial da autarquia no desígnio de mudar o lado oriental da cidade: “Decidimos que não pode continuar como está e para nós o projecto que Campanhã precisa é um game changer e o game changer é o Matadouro.” Para já, o processo volta a ficar parado. Mas Rui Moreira promete não deixar o assunto cair no silêncio. 

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