#JusticiaParaSota: os animais não podem ser tratados à lei da bala
Não podemos ignorar que os animais são desprovidos de qualquer sentido de culpa ou noção do que é proporcional numa situação destas e que, naturalmente, irão actuar de forma instintiva para proteger os seus tutores se acharem que, de alguma forma, possam estar a ser ameaçados.
O final do ano de 2018 ficou marcado por um episódio que gerou a indignação e comoção de milhares de pessoas: Sota, uma cadela que acompanhava Tauri, um jovem em situação de sem-abrigo nas ruas de Barcelona, foi morta a tiro durante uma acção de fiscalização em plena Gran Via, acção essa que deveria ter sido meramente rotineira e terminou da pior maneira para este animal.
De acordo com as notícias e relatos que foram avançados, os agentes da Guarda Urbana espanhola abordaram o jovem porque este estava acompanhado por uma cadela que não tinha trela, o que vai contra as regras municipais da cidade. Segundo os agentes, o jovem assumiu uma postura de confronto e recusou-se a pôr uma trela no animal. Foi nesta altura que, alegadamente, Sota terá mordido a mão de um dos elementos da Guarda Urbana, versão que é desmentida não só pelo tutor do animal como também pelas testemunhas que se encontravam no local, que asseguram que apenas ladrou.
As imagens de vídeo que depressa percorreram a Internet são impressionantes e comovedoras.
O que mais me impressionou — e talvez impressione todas as pessoas que, como eu, detêm animais de companhia — foi que, além do uso manifestamente desproporcional da arma de fogo para conter o animal, mesmo que este tivesse mordido o agente, a cadela foi deixada em agonia sem que lhe tivesse sido prestada qualquer assistência médico veterinária ou sequer sido permitido que o jovem Tauri se aproximasse para a socorrer e reconfortar nos seus momentos finais, quando esta permanecia aflita procurando alcançar o tutor.
Rapidamente este caso gerou a indignação e o protesto de milhares de pessoas, que através das redes sociais reclamaram por #JusticiaParaSota e mobilizaram uma petição que recolheu mais de 100 mil assinaturas. As ruas de Barcelona encheram-se igualmente de milhares de pessoas em solidariedade para com Sota e Tauri.
Casos como este devem também fazer-nos pensar nas desigualdades sociais que ainda persistem nos dias de hoje. Será que se fosse connosco e com um dos nossos animais de companhia a reacção dos agentes da Guarda Urbana teria sido a mesma? Será que teriam recorrido à mesma desproporção de meios com alguém que não se encontre numa situação de tão especial vulnerabilidade, como Tauri que é uma pessoa em situação de sem-abrigo?
Depressa outros casos de animais agredidos e/ou atingidos mortalmente vieram a público. Relembro que, por cá, em 2014, o caso Bob — um animal comunitário que foi baleado durante uma operação policial — gerou um debate, que chegou até aos tribunais, em torno desta questão e da eventual responsabilidade do agente que atingiu o animal, que acabou por ser absolvido.
Em Portugal temos assistido a uma evolução positiva no que diz respeito ao empenho por parte das autoridades policiais, PSP e GNR, que têm concentrado esforços na realização de campanhas de sensibilização contra o abandono e os maus tratos a animais de companhia, assim como na abertura para a realização de formação dos seus agentes nestas matérias.
Mas devemos ir mais além, preparando efectivamente os homens e as mulheres ao serviço dos diferentes órgãos de polícia criminal ou administrativa para o maneio e a contenção de animais sem recurso à arma de fogo, devendo a presença dos animais ser considerada na avaliação do risco das operações e no equipamento e recursos a utilizar. A integridade física de um animal, mesmo que demonstrando agressividade, deve ser preservada.
Não podemos ignorar que os animais são desprovidos de qualquer sentido de culpa ou noção do que é proporcional numa situação destas e que, naturalmente, irão actuar de forma instintiva para proteger os seus tutores se acharem que, de alguma forma, possam estar a ser ameaçados.
Cabe por isso às instituições preparar quem anda no terreno para lidar com estas situações. E não ignoro aqui as dificuldades existentes, sendo primordial reforçar os meios e condições em que trabalha quem cuida da nossa segurança e bem-estar.
Mas a protecção animal, contrariamente ao que se possa pensar, não se esgota na área da medicina veterinária. Desafia hoje as fronteiras das diferentes disciplinas e políticas públicas, como os direitos sociais, a protecção civil e a actuação policial, seja ela no domínio da acção do quotidiano ou da avaliação de risco em determinadas operações em que se saiba que existe a presença de animais no local.
Não sabemos qual será o desfecho do caso Sota, que reclama por justiça, apesar de internamente a Guarda Civil ter arquivado o inquérito que realizou.
Mas sabemos que os animais, que tantas vezes assumem o papel de heróis perante a vida humana, não podem ser tratados à lei da bala. Para lá de qualquer condenação, a justiça faz-se primordialmente na mudança de comportamento e de mentalidades da sociedade civil e das instituições, nomeadamente no tratamento que é devido aos animais.