“A Europa será social ou não existirá”
Criou em Berlim o European Democracy Lab, um “laboratório” onde jovens investigadores constroem a República europeia. Vai contra a corrente da falta de ambição reinante sobre o futuro da Europa. A sua ideia é simples: depois do mercado único e da moeda única, falta construir a República dos cidadãos. Antes disso, é preciso tirar as lições da crise financeira e mudar de paradigma. A começar por Bruxelas. Segunda de uma série de dez entrevistas sobre a Europa e o Presente.
“O pepino é igual perante a lei europeia. O euro é a igualdade da moeda. Oferecemos liberdade e igualdade para bens, serviços, mercados, mas não para os cidadãos.” Sem meias palavras, Ulrike Guérot — que, para além do European Democracy Lab, dirige em Viena o Departamento de Política Europeia e de Estudo da Democracia na Danube-University — desmonta muitas das ideias-feitas sobre o que pode ou não pode ser feito na Europa para resgatar a integração. Não há ricos e pobres, há centro e periferia. Há os soberanistas e os europeístas, mas sobre esta divisão há uma outra, de classes — os que vivem bem e os que ficaram para trás. Macron acabou com a esquerda e a direita, mas governa para a esquerda que vive bem e para a direita que vive bem. De fora estão os deserdados da modernização e as zonas rurais. Todos os países europeus estão divididos por esta fractura — foi ela que deixou o espaço vazio que os populistas ocupam. A democracia liberal já deixou de o ser, na medida em que os cidadãos deixaram, em boa medida, de poder escolher. A solução só pode ser encontrada a nível europeu, com a igualdade política entre os cidadãos — o fundamento de uma nova identidade, a única forma de combater a ascensão do populismo identitário. Utopia? É melhor do que uma distopia que destrua a liberdade e a democracia.
A Europa atravessa uma crise existencial profunda, creio que ninguém discorda disso. Em cada dia que passa temos notícias que revelam essa crise. Só as mais recentes: Macron, o salvador, está a braços com uma enorme crise interna; vários países europeus não quiseram participar no Pacto Global para as Migrações; o “Brexit” provocou uma crise política enorme no Reino Unido e ninguém sabe ainda como esta história vai acabar. Mesmo com estas más notícias, não desiste de ter uma perspectiva optimista sobre o futuro da Europa, assente em ideias que são novas. Porquê?
Quer a resposta verdadeira? Porque tenho dois filhos, com 25 e 27 anos, e porque quero deixar-lhes uma Europa que funcione. Segunda parte da resposta: porque me sinto de certo modo responsável — não individualmente, porque me tornei adulta nesses dias gloriosos do Tratado de Maastricht [1992] e de todas as expectativas de uma Europa forte e unida que tínhamos na altura. Antes disso, tinha sido a adesão de Portugal e Espanha [1986], o Acto Único Europeu [1986], a democracia para todo o continente, a prosperidade, a coesão — eram estas as promessas. Nasci em 1964. E tenho o sentimento de que a minha geração não estragou o projecto europeu, mas também não cuidou dele o suficiente. Pensávamos que a Europa estava feita. Tínhamos o Tratado de Maastricht, já não era preciso preocuparmo-nos com o futuro. Como dizia o Candide de Voltaire: “É preciso cultivar o nosso jardim.” Nós não cultivámos o jardim. Perdemos a ambição europeia e creio que foi essa falta de ambição que acabou por criar um vazio, que foi ocupado progressivamente por este populismo identitário e pelos movimentos nacionalistas.
O que é a sua República europeia? Diz nos seus ensaios que não se trata de construir os Estados Unidos da Europa, mas a República europeia. Qual é a diferença?
A minha ideia é uma mudança de paradigma na própria linguagem, porque as palavras contam muito. Andamos às voltas com os Estados Unidos há quase 70 anos e não chegámos lá. Talvez seja tempo de mudarmos de designação. E temos razões para isso. Primeiro, não queremos imitar os Estados Unidos da América; segundo, porque não funcionou; finalmente, porque os estudos empíricos provam que a palavra “República” tem uma conotação emocional positiva na História europeia. Tem raízes na cultura política europeia. Se for ao site do meu departamento, encontrará um estudo linguístico, que acabei de publicar, em que demonstro através de dados empíricos que quando digo República as pessoas reagem intuitivamente de forma diferente da forma como reagem à expressão “Estados Unidos da Europa”. A palavra “Estado” contém uma obrigatoriedade vinda de cima. A palavra “República” transmite a ideia de cidadania. De uma coisa que é minha, tua, nossa. O projecto político europeu é nosso, é o projecto dos cidadãos europeus e não o projecto dos Estados. E esta mudança de paradigma envolve muito mais a ideia de cidadania, de identidade directa. Se dissermos: nós, os cidadãos, somos responsáveis pela República da Europa, também passamos a ser, num certo sentido, a Constituinte.
O que é que isso significa exactamente?
Nós aceitamos obedecer às mesmas leis e somos iguais perante a lei. Se quer que diga numa frase o que é a República europeia, é colocar todos os cidadãos europeus para lá da etnia nacional, numa situação de igualdade perante a lei, em relação às coisas que são importantes para eles: o voto, os impostos e o acesso aos direitos sociais.
Como é que isso se concretiza?
Hoje temos uma estrutura da União Europeia que oferece as quatro liberdades de movimento: para as pessoas, mercadorias, serviços e capital. Na prática, o Mercado Único é a igualdade para as mercadorias. O pepino é igual perante a lei em todos os países. O euro é a igualdade da moeda. A directiva dos serviços diz que o trabalho de uma pessoa é igual perante a lei. Oferecemos liberdade e igualdade para os bens, para os mercados e para os serviços
Mas não para as pessoas.
Não para as pessoas ou, melhor, para os cidadãos no sentido que a República lhes confere. Por isso, enquanto cidadãos e embora sejamos os portadores da soberania, somos os únicos que, na actual estrutura, não beneficiamos de igualdade legal. Creio que é isto precisamente que devemos completar, garantindo aos europeus que são iguais no seu direito de voto, iguais perante os impostos e iguais perante os direitos sociais. A partir daqui, digo: um mercado, uma moeda, uma democracia. E se queremos uma democracia, a condição é o princípio da igualdade política. Devemos considerar todos os cidadãos europeus iguais perante a lei como um único corpo eleitoral.
Da lei europeia, não da lei nacional, perante a qual eles são iguais.
Mas, se eu mudar de Portugal para a Polónia ou para o Reino Unido, serei diferente. Precisamos de fazer a distinção entre os países da zona euro e os outros. Quando digo um mercado, uma moeda, uma democracia, não abranjo todos os países. Preciso de fazer esta distinção. Até porque uma união monetária já é um contrato social. Mas ainda não completamos esse contrato social. A segunda questão é que estamos a fazer da nacionalidade uma ferramenta de concorrência assente nos cidadãos uns contra os outros — seja no dumping social, no dumping salarial, na fiscalidade. Andamos envolvidos numa corrida para o fundo que se está a tornar sistémica, transformámos os instrumentos legais nacionais para fazer melhor do que os outros, como a Alemanha fez em relação à França.
Em matéria salarial.
Exactamente. E o que eu digo é: se queremos ser uma República, então nos 19 que já fazem parte do euro, queremos também ser iguais perante a lei, enquanto cidadãos.
Verificamos que esta crise do euro aumentou as divisões e as diferenças, não aproximou os cidadãos. Nomeadamente, abriu um fosso profundo entre os países ricos do Norte e os países menos ricos do Sul. Não apenas com os programas de austeridade, mas também com os preconceitos. Os cidadãos do Sul foram tratados como preguiçosos. E mesmo agora, quando já todos os países saíram dos programas de ajustamento e que estão a fazer os que lhes disseram para fazer, as divisões continuam visíveis. Como vê esta situação?
Essa é a realidade que nos descrevem. Nunca foi o Norte contra o Sul, devedores contra credores. Posso mostrar-lhe alguns mapas que provam que o que existe são nações divididas e que a desigualdade de rendimentos aumentou em todos os países.
Dentro deles?
Dentro deles. Na Alemanha, na França, em toda a parte. Não é a rica Alemanha contra a pobre Itália; é a rica região de Essen e o Norte de Itália contra o pobre Brandeburgo e a pobre Apúlia. Se olharmos para os indicadores da zona euro, vemos que as divisões socioeconómicas não são entre nações, entre o Norte e o Sul, mas são entre o centro e a periferia, entre as áreas urbanas e rurais. O centro é bom e as periferias são más, as áreas metropolitanas são boas e as rurais são más. Acontece que a Alemanha tem muitas zonas urbanas e está no centro [do continente], o que torna a Alemanha boa. A França, por exemplo, só tem duas grandes áreas urbanas, Paris e Lyon, e tem muitas áreas periféricas sobretudo ao longo do Atlântico. Isto reforça o meu argumento de que precisamos urgentemente de sair da maneira de pensar assente nos agregados nacionais, quando olhamos para as coisas. Quando olhamos para os números do desemprego, vemos que a França está nos 10%, mas isso faz pouco sentido na medida em que Paris e Lyon têm 4% de desemprego, estão economicamente muito bem; são os territórios rurais e das periferias que criam os gilets jaunes. O Norte de Itália está muito bem e o Leste da Alemanha não está nada bem. Temos de sair desta armadilha com que olhamos para a realidade.
É também nessa lógica que assenta a sua República europeia?
Temos de pensar de forma diferente e isso implica reconhecermos que nunca podemos encontrar boas soluções quando olhamos para as coisas com as lentes nacionais em vez de vermos as reais discrepâncias de rendimentos.
E esta nova geração europeia consegue ver as coisas desta maneira? Quando votam, dividem-se por crenças muito diferentes.
Não há essa coisa dos jovens. O que vemos hoje é que a crise social, as divisões de mobilidade, de educação — menos educado, sem grande mobilidade versus juventude Erasmus — criam duas juventudes diferentes. Tem os jovens mais urbanos, mais educados e com grande mobilidade, que são, na sua maioria, totalmente europeus; e depois tem os mais identitários, menos educados, com menos possibilidade de movimento, que, como disse, tendencialmente votam nos populistas.
Seguindo o que se passa com o resto da população.
O que podemos concluir é que a crise social de hoje é a crise europeia de amanhã. Podemos ver o que se passa na Polónia e na Hungria, mas podemos ver também o que se passa em Paris. Emmanuel Macron não tem a juventude com ele. No grupo etário entre os 18 e os 25 anos, Marine Le Pen tem mais 8% do que na média da população. A crise social determina a forma como se olha para a Europa também na juventude. E aqueles que não fazem parte da bolha europeia têm, infelizmente, a tendência para deixarem de considerar a democracia como o melhor sistema politico, têm uma forte tentação autoritária e nem sequer são contra um regime militar. Estes são os números que pode encontrar em muitos estudos de opinião.
O que disse reflecte também a crise das democracias liberais. A sua ideia é que esta crise das democracias também pode ser resolvida — ou só pode ser resolvida — a nível europeu?
A primeira resposta é que me apetece dizer que também sou populista. É uma palavra nobre. São as classes populares de Jean Jaurés e é com elas que os políticos se deviam preocupar. No Jeu de Paume, em Paris, há uma pintura que representa a República — é uma mulher que está a amamentar os cidadãos. A República preocupa-se. Toma conta. [A designação] “Classes populares” deve ter uma conotação positiva. É bom cuidar do povo. Esta ideia da elite versus o povo é uma generalização. Temos uma elite do espírito e temos uma elite do dinheiro. Posso argumentar que sou membro de uma elite do espírito, mas não tenho lá muito dinheiro, como a maior parte dos académicos não têm. Trump é a elite do dinheiro, mas sem qualquer ésprit. E se Trump não tivesse sido apoiado por parte do establishment dos EUA, nunca estaria onde está. É totalmente errado chamar-lhe um populista e dizer que a sua candidatura emanou do povo. Trump é a elite do dinheiro apoiado por parte do establishment.
A democracia liberal é o segundo problema que colocamos de forma errada. As elites estão deste lado e querem a Europa, o povo está do outro e não a quer. A democracia liberal foi ontem. Porque hoje, o que há é liberalismo, que já não é democrático — é, por exemplo, a União Europeia chegar com a troika e o com o memorando e dizer que é isto que têm de fazer. É liberalismo sem muita democracia, porque os gregos puderam votar à vontade contra ele, mas mesmo assim tiveram de engoli-lo. É o que alguns chamam de pós-democracia. Podemos sempre votar mas não temos escolha. A ausência de escolha é o problema da democracia liberal hoje. Ou o liberalismo vem sem democracia ou a democracia vem sem o liberalismo. É Orbán. Ele tem os votos e a partir daí é ele que decide.
Se reconhecemos isto, então não podemos dizer que a democracia liberal tem de ser defendida contra o populismo. Durante demasiado tempo, dissemos que a União Europeia não tinha alternativas, que não podia ser criticada e que tínhamos de defendê-la contra os populistas. O que é que estamos a defender?
A ideia de Europa, de partilha...
Defendemos o sistema que instalou uma agenda neoliberal em cada pedaço da sua circunscrição? Temos um Mercado Único que não se preocupa com os cidadãos. Temos uma União Europeia que resiste a avançar no sentido dos direitos sociais. O que é que há para defender? Creio que, pelo contrário, o maior erro foi, durante demasiado tempo, as chamadas elites liberais-democráticas não terem mais nada para oferecer do que defender a Europa contra os populistas, em vez de compreenderem que, quando se aponta um dedo aos populistas, haverá três dedos a apontar de volta. Há dez anos, depois da crise financeira, a Europa devia ter acordado e ter admitido que se calhar estava com um problema. Devia ter pensado que, se calhar, tinha mesmo de construir uma dimensão social ou uma união política, se calhar tinha de avançar para os euro-bonds e para um esquema de protecção do desemprego comum. Nada aconteceu. Numa década, nada aconteceu. Temos planos para uma união económica e monetária genuína. Vamos completá-la. Vamos avançar para uma união fiscal.
Regressando ao nível nacional que é onde a crise das democracias se manifesta, não há ninguém que tenha compreendido os problemas?
Macron não é de esquerda nem de direita. Mas são agora os gilets jaunes que estamos a ver. Porquê? Macron está a governar a França com a parte da direita que vive bem e com a parte da esquerda que vive bem, mas perdeu os trabalhadores à esquerda e perdeu os agricultores e o pequeno artesanato à direita. Isso não pode funcionar. O que estou a dizer é que o novo paradigma já não é esquerda e direita, de facto, mas é uma parte europeia que vive bem contra uma parte que foi deixada para trás. São os gilets jaunes.
Se queremos enfrentar esta realidade, temos de renovar o sistema político trazendo de volta a direita e a esquerda, mas só conseguimos fazer isso ao nível europeu e é esse também o meu ponto para a República europeia. Hoje, em traços gerais, todas as nações da União Europeia estão divididas em duas partes. Os leavers e os remainers, as áreas rurais contra Londres. Temos o Pegida e temos Frankfurt. Temos a Liga e o Cinco Estrelas contra o resto da Itália.
Abertura e fechamento, soberanistas e europeístas — é esta a divisão que é hoje importante?
O que lhe digo é que, sob esta divisão entre soberanistas e europeístas, há uma linha de divisão entre classes. Os pobres contra os ricos. E assim a Europa não pode funcionar. Tiro uma conclusão fundamental: a Europa ou se torna social ou não existirá. E, se vier a ser social, a minha resposta volta a ser a República europeia, precisamente porque Respublica quer dizer “bem comum”. O Mercado Único é algo de muito diferente. A República tem de se preocupar com os seus cidadãos.
O Mercado Único criar as condições para a competição.
Não defendo o fim do Mercado Único ou do euro, precisamos de ambos para a arena internacional. Nenhum país ficaria melhor com o regresso da sua moeda. Mas não chega para colocar os cidadãos numa posição de igualdade perante a lei, o que significaria que, na Europa ou pelo menos na zona euro, evitarmos a actual situação em que os cidadãos competem uns contra os outros. Precisamos de ter coisas como um salário mínimo europeu, standards idênticos, sistemas de protecção ao desemprego, saúde pública — que até pode ser privada ou garantida por seguros. Mas, se queremos garantir e aumentar a mobilidade, se levarmos em conta os cerca de um milhão de bebés Erasmus que já nasceram, precisamos que a dimensão social siga o Mercado Único.
Os cidadãos vêem outra coisa. Por exemplo, quando os governos aceitam o que Bruxelas determina, os mercados ficam eufóricos. Quando o Governo italiano, por boas ou más razões, disse que queria um défice maior para estimular a economia, os mercados penalizaram imediatamente os juros da dívida italiana. As pessoas podem olhar para isto e pensar: eu ainda tenho escolha? Como se responde a isto? É possível quebrar este círculo vicioso?
Concordo consigo. Há uma questão fundamental sobre o futuro do capitalismo financeiro, uma questão fundamental sobre até que ponto tornar os Estados dependentes das agências de rating. Conhece como eu autores como o francês Emmanuel Todd que diriam simplesmente: cortem a dívida. Eu seria muito mais prudente e diria que ainda não encontrámos a resposta. Mas sabemos que, formalmente, a definição de um Estado é poder cobrar impostos. É por isso que não cai na bancarrota, fica fora do julgamento sobre a sua capacidade de pagar. Os EUA estão sobreendividados, o Japão também.
E não se preocupam muito.
Não se preocupam. Porque é que havemos de fazer a dívida italiana dependente da disposição dos mercados? Mas há outra questão talvez mais fundamental que é saber o que é hoje um Estado. Se a definição do Estado era a possibilidade de cobrar impostos, isso hoje já não é assim. Há offshore, paraísos fiscais. E se está limitado na sua capacidade fiscal também não pode redistribuir. E é esta a pressão. O que é um Estado? O que é que pode fazer? E até que ponto está dependente dos mercados financeiros devido à sua dependência do serviço da dívida.
Mas aí Bruxelas não serve para proteger os Estados-membros.
Eu sei. Concordo com o que diz e não sou a única. A Alemanha viveu uma situação interessante com Friedrich Merz, durante a campanha para a sucessão da chanceler Merkel, contra a candidata que ganhou: Annegret Kramp-Karrenbauer (AKK). Apenas 37 votos impediram a Alemanha de cair na armadilha do capitalismo financeiro. É errado dizer que Merz tinha uma experiência e uma competência empresarial. Ele tinha apenas a competência dos mercados financeiros, o que é completamente diferente de dirigir um negócio num ambiente concorrencial. Macron está a falhar pela mesma razão. Também ele vinha de um banco de investimento, carregando essa imagem de um liberal para uma nação de start-ups. Mas também vinha dos mercados financeiros. O problema hoje é esta desconexão entre a economia real e os mercados financeiros.
Isso quer dizer que ninguém aprendeu nada com a crise de 2008?
Eu colocaria a questão de outra maneira. Concordo que ainda estamos no mesmo paradigma de antes da crise. Bruxelas não mudou. Mas estamos agora a uma década da crise financeira, temos uma década de literatura, temos boas análises, as ciências sociais trabalharam muito e bem, aliás trabalharam melhor do que as ciências económicas, que ainda não compreenderam totalmente a lição de que os mercados são uma espécie de arbitragem psicológica. As ciências sociais têm hoje uma boa leitura do que foi a crise dos mercados financeiros, das mudanças nas nossas sociedades, incluindo o facto de o Estado ter perdido o seu poder de redistribuição da riqueza e das consequências sociais dessa realidade.
Se nos lembrarmos de que a ciência leva quase sempre uma década a começar a ter efeitos práticos, creio que estamos agora nesse momento em que aquilo que a ciência produziu na década passada começa a ter o seu efeito na sociedade. Os gilets jaunes, por exemplo. Creio que só as pessoas que não liam as análises sociais sobre as consequências do capitalismo dos mercados financeiros é que não conseguiam entender o que se poderia passar. Penso que é justo dizer que Bruxelas está ainda no mesmo paradigma, mas também é justo dizer que há cada vez mais gente que entende que é preciso fazer alguma coisa. Hoje, já se pode dizer que a agenda neoliberal que dominou nas últimas décadas tem de mudar, que temos de retirar os Estados das mãos dos mercados financeiros, sem sermos apelidados, como há dez anos, de radicais revolucionários. Hoje há políticos mainstream [na Alemanha], da CDU, do SPD, dos Verdes a dizer a mesma coisa. Esta a tornar-se cada vez mais mainstream que é preciso acabar com esta amálgama entre os mercados financeiros e o Estado, e que é preciso fazer alguma coisa, se não queremos perder os nossos sistemas políticos para o populismo.
Mas para isso é preciso líderes políticos que se ergam à altura dessa necessidade, o que não é fácil.
Eles estão todos aí. O problema é que os que estão a entrar em campo não agem em conjunto. Aparentemente, a atomização da sociedade foi tão longe como isso. É também por isso que emergem líderes como Macron ou Sebastian Kurz, que lideram movimentos e não partidos e os movimentos funcionam com líderes, os partidos com muita gente. Estamos a mudar de um sistema de partidos para um sistema de líderes. Ninguém consegue agregar estas tendências num movimento de esquerda-liberal-verde, que acaba por ter uma larga maioria à sua disposição. Porque os chamados populistas são a minoria audível de uma maioria silenciosa. Onde quer que sejam medidos, os populistas representam 30 a 35%, mais ou menos um terço. O que quer dizer que dois terços querem alguma coisa muito diferente. Querem Europa, liberalismo, social-democracia, ecologia.
Sobretudo nos países mais ricos, as pessoas não estão a viver pior do que viveram nas últimas décadas e mantêm uma protecção social elevada. O problema novo é que têm medo do futuro — da incerteza sobre as suas vidas e as dos seus filhos. A percepção conta muito.
Concordo completamente. A insegurança vem de muitos factores — factores externos, como o que se passa nos EUA, Putin, a ascensão da China, e depois há o novo mundo digital. Em tempos de insegurança, o que as pessoas querem é estabilidade e ordem. Os únicos que fornecem uma oferta apropriada de ordem são os populistas. Às vezes, a brincar, digo que estamos a sofrer agora as dores do pós-estruturalismo — a esquerda desconstruiu de tal maneira tudo, o Estado, as instituições, a sociedade, até o género, deixou de haver sexos, que se perdeu o conjunto. Sou mulher ou não sou mulher. Sou membro de um sindicato ou não tenho representação. O problema é que a esquerda se esqueceu das classes — é tudo sobre identidade, tudo sobre racismo, minorias, lésbicas, judeus, hispânicos, negros, eu sei lá. As pessoas comuns não recebem qualquer mensagem e a classe social deixou de estar no radar.
E no momento em que apenas falamos de soberanistas e de europeístas, esquecemo-nos de que a força condutora fundamental da sociedade é a divisão de classes. Hoje é assim. Um pouco menos de um quarto da população europeia pode considerar-se pobre. É demasiado. E agora temos a ligação entre a classe e a insegurança. Se as nossas análises estão certas, existe essa divisão de classe. As classes mais altas são a favor da Europa, do euro, da austeridade. E depois temos pessoas que não querem perder a sua segurança, as suas referências, o seu ambiente social. Há duas opções. Ou encontramos uma forma de República europeia que implica uma solução europeia que deixe de pôr as pessoas umas contra as outras, compatibilizamos mercado e a dimensão social, criamos um corpo político.
A questão é saber porque é que isto não está a acontecer, longe disso.
Não está a acontecer porque não tem uma força motora económica, porque custa alguma coisa. A diferença está em que o Mercado Único e a moeda única tinham uma lógica económica forte, porque as indústrias e os bancos queriam as duas coisas e ganharam muito com elas — e por isso os políticos passaram a querer também. Faltam os cidadãos. Estamos pela primeira vez neste continente perante a tarefa de organizar a democracia europeia, no sentido da igualdade das pessoas perante a lei, sem termos uma lógica económica por detrás. No sentido que lhe dá Habermas, a igualdade das pessoas perante a lei tem um preço. Pagar o mesmo subsídio de desemprego de Portugal a Berlim tem um preço.
E, pelos vistos, ninguém o quer pagar.
Isso não está a acontecer porque o capital alimenta o populismo, porque se dá bem com ele — é a resposta mais barata. O que aconteceu com Trump quando foi eleito? Os mercados ficaram apreensivos? Não. Regozijaram. O que sabemos do passado é que o capitalismo foi compatível com o fascismo e hoje verificamos que o populismo é perfeitamente compatível com o capitalismo. Creio que esta é a batalha do futuro.
A questão principal é saber como é que os partidos do centro vão reagir. Os socialistas e sociais-democratas estão em queda. O centro-direita perde força. Uns tentam encostar-se à esquerda, os outros à direita. Não se vê claramente que andem à procura de um outro paradigma que defenda as democracias liberais.
Essencialmente, a questão está em convencer o centro de que ou cai para o lado dos populistas ou cai para o lado da esquerda. Precisamos de encontrar uma lógica económica também para isso. Nenhum sistema é de graça. Podemos dizer que subsídios europeus ou euro-bonds são muito caros. Mas podemos dizer que a escolha é pagar o preço pela Europa ou pagar o preço da não Europa. Que será pago não apenas em moeda, mas na perda da liberdade e da democracia. Este argumento pode acabar por fazer inclinar a balança do centro para a ideia de que é preciso pagar um preço para uma Europa social. É o que querem dizer os gilets jaunes, mas também os italianos, os gregos. Este pode ser o argumento ganhador: pagar pela utopia em vez de pagar pela distopia. Dito isto, todas as análises económicas indicam que a guerra tem uma lógica económica e que a paz não tem. Pode ganhar-se imenso com a segurança. Há 40 anos, falávamos do complexo militar-industrial. Hoje devíamos estar a falar do complexo tecnológico que nos levará cada vez mais para o negócio da segurança, como o anterior nos levou para a militarização excessiva.
Há também o novo fenómeno das empresas tecnológicas que concentram um poder tal que ninguém consegue sequer taxá-las, como se vê agora na Europa. Estou a referir-me às quatro grandes.
Elas podem fixar-se onde quiserem, na Irlanda ou na Holanda ou ter a sede no Panamá. E há outra explicação: os EUA conseguiram destruir a Standard Oil mas não podem destruir a Google. Os EUA não admitiam a existência de um monopólio. Eu não tenho nada contra a economia de mercado assente na concorrência leal, com regulação social. Mas temos uma nova estrutura monopolista que pode ignorar os Estados. Krugman já disse inúmeras vezes que a Amazon devia ser destruída, como a Standard Oil foi destruída. O problema é que não é hardware, é software. Não é fisicamente destrutível.
Não podemos tocar a nuvem. Mas há também as consequências sociais e políticas das novas tecnologias. Bolsonaro foi eleito praticamente sem ter de recorrer aos jornais ou à televisão, que o tratavam bastante mal, apenas às redes sociais. O gilets jaunes dificilmente existiriam sem os media sociais. Há coisas boas mas também há consequências inesperadas e potencialmente negativas.
Há paralelismos históricos. Foi apenas graças à impressora que as pessoas começaram a ler no século XVII e que, no século XVIII, houve revoluções — as pessoas conseguiam ler panfletos. Os novos media têm sempre uma natureza igualitária. Hitler não ascendeu ao poder porque escrevesse bons artigos nos jornais, mas porque tinha a rádio à sua disposição. A rádio era o novo meio igualitário que o establishment não levava a sério. Preferia ler jornais. Hoje é a mesma coisa. A Internet é o novo momento igualitário do povo. Em cada um dos três grandes períodos tivemos momentos revolucionários. A Revolução Francesa, a revolução radiofónica, que acabou muito mal, com Hitler e Mussolini, e agora não sabemos.
Escreveu um ensaio antes das eleições de 2013 dizendo que a Europa queria que a Alemanha tivesse um papel liderante, mas que não deviam esperar isso da Alemanha. A crise acabou por traduzir-se em mais poder para Berlim e nem sempre esse poder foi exercido da melhor maneira durante a crise do euro. Mesmo assim, quase toda a gente aprecia a chanceler. Qual é a explicação?
Tenho um enorme respeito pela chanceler Merkel. Ela trabalha imenso, foi admirável em tempos difíceis. Do ponto de vista da Alemanha, liderou muito bem o país durante a crise do euro mas só liderou bem para a Alemanha. Houve um preço que outros países pagaram para que a Alemanha se saísse muito bem da crise. Pode publicar esta afirmação na imprensa portuguesa, mas vê-a raramente num jornal alemão. Talvez para ser simpática para com Merkel, eu diria que ela não podia salvar a Europa porque tinha um dever em relação à Alemanha. Mas claro que todo este dumping salarial, a austeridade, as regras rígidas, apertaram o pescoço a muitos outros países e aos seus sistemas partidários. A Alemanha saiu bem da crise do euro às costas dos outros países. Mas, porque os alemães nem lêem os jornais estrangeiros nem conhecem os efeitos da crise, podem pensar que Merkel fez tudo bem.
Mas alguma coisa terá feito bem para receber o apreço que hoje tem. Ou então é por comparação.
Há outra questão. Não ignoro que há muitos europeus que também gostam de Merkel. Talvez por causa daquela ideia de ser a única líder que sobrava do mundo livre, depois de Obama. Quem senão ela? Mas Merkel não representa a Europa e a chanceler da Alemanha não tem autoridade para falar em nome da Europa. Ora, hoje é ela que fala directamente com Trump, com Putin, com Xi. E não devia ser assim. Devia ser a Europa. A minha pergunta é: gostam dela ou respeitam-na? Penso que há bastante respeito, porque toda a gente precisa de impressioná-la favoravelmente. Creio que é mais respeito do que outra coisa.
Merkel liderou bem nalguns domínios e noutros liderou mal. Já falei do euro. Ao nível da Europa dos 28, a chanceler fez o que devia em relação a Putin e manteve a Europa unida. Também fez bem na crise dos refugiados. Já a sua liderança da crise do euro não se pode dizer que tivesse sido boa. Podemos discutir se a responsabilidade foi dela ou se foi de [o anterior ministro das Finanças] Wolfgang Schäuble — talvez ela não tivesse sido tão implacável.
Curiosamente, ela argumentou que uma das razões para fazer o que fez em relação à crise do euro foi para evitar que se constituísse um partido de extrema-direita antieuropeu na Alemanha. Podemos hoje dizer que esse objectivo falhou redondamente. Apenas por causa da crise dos refugiados?
É muito importante recordar que a AfD foi criada como reacção à crise do euro e não aos refugiados. O FDP estava a boicotar o seu próprio governo [de coligação com a CDU] e não queria aceitar os mecanismos de bail-out, lançando uma grande discussão sobre uma “Europa de transferências” em que os alemães pagavam a toda a gente e não deviam pagar. O que é um disparate porque não é sequer verdade. Esta vitimização dos alemães, que pagavam tudo, foi muito negativa — foi mesmo um desastre — mas manteve durante muito tempo.
A AfD foi fundada por um tipo que, por acaso, estudou comigo na universidade e que representava a burguesia alemã — jornalistas, membros de associações industriais, professores de economia — que não tinha nada que ver com as classes populares. Qualquer movimento social apenas pode funcionar se várias condições estiveram reunidas. Olhe para os Verdes. Nos anos 1970 eram o movimento pacifista, o movimento feminista, o movimento ambiental — três movimentos que se juntaram e criaram os Verdes. Hoje já só há uns 3% de alemãs que se dizem nazis. Mas, para além deles, vieram os perdedores da modernização, pessoas que não beneficiaram da globalização e, somando-se a elas, veio esta elite burguesa que achava que não tinha de pagar pelos outros. Em poucos meses, conjugaram-se três grupos diferentes do ponto de vista societal.
Os neonazis, que existiam desde sempre, mas com muito pouca expressão, os perdedores da modernização, mais esta burguesia que se sentia traída pelo euro. Começaram por conseguir cerca de 5%. E só três anos depois, com o pico da crise dos refugiados, conseguiram passar para uma votação muito mais expressiva. A crise dos refugiados funcionou como o catalisador que fez a AfD passar de 5 para cerca de 14%. Mas é importante lembrar que já lá estava. Foi o momento em que a AfD aprendeu a andar. Tinha apenas uma perna, a perna antieuro. Passou a ter duas, com a perna anti-imigração. Com duas pernas, eles começaram a andar.
Qual é hoje o debate político na Alemanha sobre o euro e a Europa? A Alemanha continua a sentir a Europa como antes da unificação? Uma garantia de contenção do seu poder no centro da Europa? Ou, como disse Schroeder, sente-se cada vez mais como uma nação normal?
Se queremos ter margem de manobra contra os chineses, contra a concorrência da China nos mercados, só o podemos fazer porque ainda representamos um quarto da economia mundial e 500 milhões de consumidores relativamente ricos, mas precisamos de instrumentos europeus para fazer a redistribuição. Se continuarmos a funcionar apenas a nível nacional, não conseguiremos grande coisa. Nós, alemães, não me parece que tenhamos grande possibilidade de sair desta lógica. Creio que com AKK compramos algum tempo. Mas também creio que ainda não estamos a salvo, que também há um deslizamento. Não sabemos o que acontece em Maio, com várias eleições para os parlamentos regionais do Leste. O que vejo é que temos na Alemanha uma agenda nacional e que a verdadeira questão já não é Europa ou soberanismo, mas se vamos seguir o caminho nacional social ou nacional neoliberal. Merz teria sido a visão neoliberal mas nacional, tudo pela competitividade da economia alemã; AKK vai mais no sentido nacional social. Mas em ambos os cenários é uma agenda fechada, nacional. Não vejo muita discussão europeia nem falar-se muito da Europa. Já devíamos ter respondido a Macron há um ano e isso não aconteceu.
Não há motor?
A próxima Europa não é sobre a Alemanha, a França ou Portugal. A próxima Europa, se houver Europa, terá de ser sobre os cidadãos europeus. E, quer seja portuguesa, finlandesa, eslovaca ou alemã, a questão fundamental será: é a favor de direitos iguais para os cidadãos europeus, por uma verdadeira cidadania europeia?
O povo só saberá apreciar a liberdade se tiver a República, disse [Georges Jacques] Danton. O futuro da Europa será decidido na resposta à pergunta: seremos capazes de institucionalizar a democracia europeia da mesma maneira que institucionalizámos a moeda e o Mercado Único? E seremos capazes de o fazer na base da igualdade dos cidadãos perante a lei? Tal como a moeda e os mercados beneficiam da igualdade legal? Se, enquanto cidadãos, soubermos dizer sim, então poderemos estar no “momento Mayflower” de Hanna Arendt. Aceitamos a mesma lei como cidadãos e isso fará de nós um corpo político. E a partir daí poderemos discutir se queremos mais direitos sociais ou mais protecção do ambiente, haverá o combate político entre liberais e conservadores ou verdes.
Há um livro fantástico de Marcel Mauss que foi agora republicado na Alemanha, La nation, ou le sens du social, que ele escreveu em 1923 e que oferece uma magnífica definição sobre o que é uma nação. Não é a etnicidade, nem sequer a língua — os bretões e os corsos são cidadãos franceses. Qual é a definição dele? “Solidariedade institucionalizada.” Temos de conceber um novo projecto europeu em que pelo menos aqueles que já estão hoje na zona euro criem um sistema de solidariedade institucionalizada, que acabe a ideia de que aquilo com que pode contar cada cidadão europeu depende apenas da sua nacionalidade. Esta definição cívica da nação é etimologicamente congruente com a República.
E a alternativa?
O capital a alimentar o populismo e o populismo a limitar a liberdade. Bertolt Brecht disse: “O próximo fascismo chegará de fato.” E é por isso que não lhe prestamos atenção. Um pesadelo que até pode parecer agradável com o acesso aos bens de consumo e a vida a correr sem novidades. Mas a pior distopia é aquela que não conseguimos reconhecer.