Miguel Macedo e as “canalhices”
À Justiça o que é da Justiça mais não é do que um truque habilidoso que os políticos arranjaram para fugir a responsabilidades que são suas, e só suas.
Há muita coisa para reflectir sobre a absolvição de Miguel Macedo no processo dos Vistos Gold, que não pode certamente ser resumido à frase que Macedo proferiu após a leitura do acórdão: “O tribunal deu hoje respostas às canalhices que me fizeram ao longo de quatro anos.” Era bom que fosse assim tão simples. Não é. O ex-ministro foi inocentando de responsabilidades criminais, com certeza, e o Ministério Público (MP) não fica bem na fotografia quando apenas sete dos 47 crimes do processo foram dados como provados. Contudo, a leitura do acórdão de forma alguma isenta Miguel Macedo das suas responsabilidades políticas – bem pelo contrário.
Relativamente ao concurso público internacional para manutenção de helicópteros Kamov, o acórdão dá como provado que Macedo enviou o caderno de encargos ao seu amigo e empresário Jaime Gomes. Simplesmente, conforme explicou o juiz Francisco Henriques, para que se verificasse o crime de prevaricação imputado a Macedo seria necessário provar a intenção de “beneficiar alguém”. “O que foi feito foi mal feito”, afirmou o juiz, “mas se foi para prejudicar ou beneficiar o tribunal não apurou qual foi a intenção”. Ou seja, o acórdão deu como provado que Miguel Macedo entregou o caderno de encargos do concurso a Jaime Gomes, mas como não se provou que o amigo do ex-ministro entregou o caderno de encargos a algum dos concorrentes, então não há crime. Evidentemente, isto não pode ser classificado como uma “canalhice” do MP – diria que é mais escapar à tangente de uma condenação devido à formulação da lei e às garantias da presunção de inocência.
Donde, não vale a pena andar por aí a rasgar vestes acerca da grande injustiça que Miguel Macedo sofreu desde a sua demissão em 2014, como se ele fosse um anjo perseguido por belzebu – até porque estas supostas injustiças que os políticos sofrem são constantemente alimentadas pelos próprios. De facto, o grande problema, ao longo dos últimos anos, tem sido a confusão constante entre responsabilidades políticas e criminais, como Miguel Poiares Maduro tem alertado com frequência, e com inteira razão. Por mera estratégia, os políticos empurram para os tribunais o dever de averiguar responsabilidades que são suas, confundindo constantemente graves falhas éticas com a prática de crimes. Esta confusão não é um acaso – é uma forma de adiar a assunção de responsabilidades políticas, exigindo o apuramento de responsabilidades criminais. E, assim, os próprios partidos, em vez de darem resposta às acusações de que alguns dos seus destacados membros são alvo, preferem usar o novo mantra da irresponsabilidade política: “À Justiça o que é da Justiça.”
Que é como diz: falamos disso daqui a dez anos, quando houver sentença transitada em julgado. Pior. Como o Ministério Público é compelido a agir, ele está constantemente a ser derrotado e condenado a consumir os seus parcos recursos em casos criminalmente ridículos, como é o caso das viagens da Galp, a oferta dos bilhetes do Benfica ou as incompatibilidades do ministro Siza Vieira, que ainda há pouco valeram ao MP um puxão de orelhas do Tribunal Constitucional. Esta estratégia não é inocente: ela põe propositadamente o MP a fazer figura de urso, ao mesmo tempo que transforma inevitáveis absolvições criminais em banhos lustrais de absolvições políticas. À Justiça o que é da Justiça mais não é do que um truque habilidoso que os políticos arranjaram para fugir a responsabilidades que são suas, e só suas.