Os monumentais vinhos de João Póvoa, um “ourives” da Bairrada

Este texto é sobre os vinhos Kompassus. É sobre grandes vinhos portugueses feitos numa adega humilíssima com uvas de vinhas sem a imponência paisagística das encostas do Douro, por exemplo.

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Adriano Miranda

São vinhas de aparência simples como tantas outras, mas com uma enorme riqueza intrínseca, fruto de uma conjugação perfeita entre videiras, solo e clima. Se fosse na Borgonha, estaríamos a falar de “Grand Cru”, designação atribuída apenas às melhores parcelas. Como é na Bairrada, são vinhas sem qualquer selo, como quaisquer outras, apesar de ano após ano, invariavelmente, originarem vinhos admiráveis, ricos e duradouros.

A história dos vinhos Kompassus é também a história de João Póvoa, médico oftalmologista em Coimbra e desde criança ligado à vitivinicultura. Como os chefes que baseiam a sua cozinha nas memórias familiares, também João Póvoa faz hoje vinhos a partir das vivências na adega com o avô materno e o pai e na vinha com a mãe.

Já se sabe como é: em jovens, os filhos são muitas vezes os maiores críticos dos pais; mais tarde, acabam a imitá-los e, por vezes, a sofrer as mesmíssimas penas (não é o caso). Também acontece muitas vezes os pais não acreditarem nos filhos e arrependerem-se mais tarde.

Numa certa vindima, João “driblou” o progenitor e fez um vinho às escondidas. Era um rosado. Nesse tempo, as uvas iam inteiras directamente para uma lagareta. Entre a vinha e a adega, muitos bagos rebentavam e quando a dorna era despejada já levava muito líquido. Sem o pai saber, João foi desviando um pouco da “lágrima” inicial das várias dornas de uvas até encher uma barrica de 150 litros, que deixou fermentar de forma espontânea. Em jovem, João Póvoa chegou a trabalhar durante as férias na Adega de Cantanhede e gostava especialmente dos rosés que ali se faziam com os mostos pouco prensados. O seu vinho era inspirado nesses rosados. Quando, mais tarde, o pai descobriu o vinho, criticou o filho por ter feito uma “água-pé”. Mas, nas suas costas, era esse palhete que gostava de beber.

Em 2017, João Póvoa voltou a fazer um vinho idêntico, mas agora com as lágrimas das várias prensas de Baga que foi fazendo para espumante. Vai chamar-lhe João Póvoa Colecção Privada. É um rosé austero, tenso e fresquíssimo. Uma delícia.

No ano anterior, já tinha feito um outro vinho nostálgico, emulando uma criação do pai. Um branco de Maria Gomes e Bical em lagar. O mosto só era sangrado ao fim de quatro a cinco dias, quando a “manta” já estava mesmo em cima e a fermentação entrava na fase exponencial. A fermentação ao ar livre queimava os aromas de fruta mas extraía mais matéria das películas. Estes vinhos de curtimenta ficavam com uma textura mais rica e duravam muito mais tempo.

Este branco de 2016 vai chamar-se “Gene”, em tributo à herança familiar de João Póvoa. Quem já o provou, como eu, pode atestar que se trata de um branco admirável. Já está engarrafado, mas ainda vai ficar mais algum tempo em adega. Antes, João Póvoa vai lançar um Gene tinto, de 2007, um vinho que incorpora ensinamentos e técnicas de três gerações. Trata-se de um Baga denso, extraído, fresco mas ainda com bastante tanino (o vinho estagiou 24 meses em barricas novas). Promete durar décadas, mas será difícil que algum dia atinja o nível do emocionante Kompassus Baga Colecção Privada 1991. Simplesmente porque vinhos como este só se fazem uma vez na vida. Um tinto ao nível dos melhores do mundo.

Parece perfeito, mas o Baga 1991 nasceu e evoluiu literalmente aos tombos, como costuma acontecer com as grandes criações. Foi o primeiro vinho que João Póvoa produziu sozinho a partir de uvas de uma vinha muito velha que já arrancou. Dessa década, guarda ainda outros vinhos memoráveis, como os 1994, 1995 e 1997. O último clássico da fase Quinta de Baixo data de 2003.

O 1991 não é um Baga puro. Na vinha havia também algumas videiras de Moreto e de outras castas antigas. Na Bairrada sempre foi tradição lotar a Baga com uvas de variedades mais mansas, como a Moreto ou a Bastardo, por exemplo. O vinho foi feito num lagar aberto na velha adega da mãe e com cachos por desengaçar. Começou por estagiar numa cuba de cimento e passou depois dois anos num tonel antigo, já fora de uso, que João Póvoa tinha herdado do avô e que ele próprio recuperou e limpou durante as férias de Natal. Era um vinho tão denso que entupiu o filtro de placas da Quinta das Bágeiras onde foi filtrado antes de ser engarrafado.

O vinho era vendido pelo Pingo Doce. Na altura, passou despercebido. Em 2007, por motivo de doença, João Póvoa decidiu vender a marca Quinta de Baixo, as instalações e as vinhas mais novas a uns investidores de Águeda (que revenderam tudo em 2012 à Niepoort). Ficou apenas com algumas vinhas de argilo-calcário em Cordinhã e Ourentã (Cantanhede), um dos grandes spots da Bairrada, e com a marca Kompassus, que havia registado quando decidiu fazer uma vinha à moda antiga, de compasso apertado e com uma densidade de plantação mais alta.

Os primeiros vinhos com a nova chancela chegaram ao mercado em 2008, mas foi só a partir de 2012, já com o apoio enológico e comercial de Anselmo Mendes, que o projecto descolou (foi a conselho de Anselmo Mendes que João Póvoa plantou alguns talhões de Tinto Cão e de Alvarinho em terrenos de argilo-calcário expostos a sul; os primeiros vinhos, sobretudo o Alvarinho, deixam água na boca).

Foi um pouco antes de Anselmo ter chegado que João Póvoa “descobriu” na velha adega uma palete de garrafas por rotular do Quinta de Baixo 1991. O vinho tinha passado vários anos quase ao abandono, à chuva e ao calor. Alguns trabalhadores achavam que era um vinho sem importância e foram-se servindo. Quando João Póvoa se mentalizou da relíquia que tinha li, sobravam apenas cerca de 250 garrafas.

Uma boa parte vendeu-as, já com o rótulo Kompassus, a 500 euros, um preço superior ao Barca Velha. Agora guarda apenas umas quantas para consumo pessoal. Não sei se a Comissão Vitivinícola da Bairrada comprou algumas. Devia fazê-lo, porque este é o tipo de vinha que a região devia mostrar ao país e ao mundo, como testemunho do enorme potencial da Baga e da própria Bairrada. Luís Pato tem toda a razão quando diz que os tintos de Baga deviam ser a “ourivesaria” da Bairrada, produzidos em pequena escala e vendidos a preços mais altos.

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