Joana Tadeu lembra-se da montanha de presentes que desbravava todos os anos no Natal, em criança. “Durante muito tempo fui filha única, neta única, sobrinha única, prima única, bisneta única. Tudo única”, descreve. O rio de presentes corria, por isso, numa única direcção. Hoje, com 29 anos, os Natais da consultora de ecologia são bem diferentes.
Nas redes sociais faz publicações sobre a sua vida como minimalista e ambientalista. Está ligada também a movimentos que nos últimos meses têm ganho expressão, como o Zero Desperdício. Por si só, já levanta obstáculos. Mas nesta altura do ano, em que a mesa se enche de pratos e os presentes se amontoam debaixo da árvore, manter estes princípios é particularmente desafiante.
E há várias motivações para querer reduzir o consumo do Natal, estejam elas ligadas às despesas ou à vontade de celebrar de outra forma. Um dos principais obstáculos passa por vezes pela forma como se gere esta vontade própria com o resto da família.
Será mais difícil mudar drasticamente atitudes com o Natal à porta, diz Joana Tadeu. “Acho que a educação das pessoas que dão presentes (aquelas mais próximas) deve ser feita com muito tempo de antecedência, não no momento em que oferecem os presentes”, defende. “Se isto é uma coisa importante — e para mim é —, então deve ser um assunto que surge regularmente. Há pessoas que vão ignorar e dar respostas a despachar. Mas se realmente gostam de nós e nos querem ver felizes, vão ouvir e vão reagir.”
Haverá sempre excepções. Joana considera que recusar presentes “não resolve nada, só magoa as pessoas”. Defende que é melhor “aceitar e aceitar as consequências disso” – ou seja, os presentes que nos são dados passam a ser da nossa responsabilidade. “Significa que, se não me servir, vou desfazer-me dele, da maneira mais responsável possível: vou oferecê-lo a outra pessoa, vou doá-lo ou vou reciclá-lo.” Então, devemos aceitar a responsabilidade sobre o presente, agradecer, “fazer o nosso papel, porque de facto aquilo foi feito com amor, em princípio”, sugere.
Não dar nem receber
Já Ana Milhazes tem um ponto de vista mais radical. “Há muitos anos que nem ofereço nem recebo. É mesmo uma posição minha. Eu sou completamente contra o consumo nesta altura”, afirma a autora do blogue Ana, Go Slowly e fundadora do grupo de Facebook Lixo Zero Portugal. Ao início “não foi assim muito fácil”, reconhece, sobretudo com pessoas mais velhas, afirma, referindo que foi mais um processo ao longo do tempo do que imediatamente antes do Natal. “As pessoas de alguma forma foram-se habituando.”
Apesar de esta questão estar até ligada à actividade de Ana, que dá aulas de ioga e faz palestras sobre sustentabilidade, há quem insista em dar presentes. “Custa muito dizer que não. É difícil, mas recuso”, revela. “Digo: ‘Não precisavas de me oferecer, porque eu gosto mesmo de marcar a minha posição.’ Tento explicar da melhor forma possível. Tenho uma pessoa que ainda não consegui que deixasse de me oferecer presentes. Tem mesmo esse gosto em oferecer. É a única pessoa a quem nunca consegui recusar”, continua.
Ana Milhazes faz duas sugestões para evitar conflitos: “O melhor é dar o exemplo. Não adianta estar com este discurso e depois chega a hora H e faço igual. Em tudo aquilo que digo as pessoas têm de ver que faço efectivamente o que digo. Depois é tentar ser o mais simpática possível, isto com qualquer pessoa — família, na rua ou quando vou ao café.”
Joana Tadeu refere, por outro lado, que os presentes que se oferecem também são uma forma de dar o exemplo. “As pessoas não devem sentir que estão a julgar-nos ou que nós estamos a julgá-las”, atira. “Tem que ver com os meus valores e os meus hábitos. São as pessoas que têm de chegar a essa conclusão sozinhas. E se quiserem que eu explique porque faço isto assim, estou aqui. Agora, não têm a responsabilidade de se comportar como eu.”
Margarida Vieitez, especialista em Mediação Familiar e autora de vários livros sobre relacionamentos, diz que tudo “depende da forma” como se faz as coisas. “Se já informou a pessoa, atempadamente, que prefere estar com ela mais vezes e não quer presentes, e ela insiste, essa pessoa não está a respeitar a sua vontade, então o melhor é explicar-lhe novamente o seu ponto de vista.”
Amigo secreto de família
Já há famílias que optam por jogar ao “amigo secreto”, em vez de oferecerem presentes uns aos outros. A de João Coelho vai celebrar o terceiro Natal desta forma. “Nós somos bastantes e comprar prendas para toda a gente acaba por ser uma grande despesa”, justifica. Além disso, também já não havia crianças na família. “Somos todos adultos, a mais nova tem 18 anos. Já passámos aquela fase de ver a sala cheia de prendas”, conta.
A ideia foi de uma tia. Apesar de algumas queixas iniciais dos mais novos, por passarem a receber menos presentes, foi bem aceite por toda a família. “Acho que faz todo o sentido, porque poupamos muito dinheiro. E é óbvio que as intenções são sempre as melhores, mas é muito mais simples e prático darmos a uma pessoa”, comenta o jovem de 27 anos. Há quem dê presentes fora deste esquema, mas apenas entre as pessoas mais chegadas, aponta ainda.
Na noite de Natal, a troca de prendas é, claro, mais rápida, mas acaba por suscitar interacção entre os membros da família nas semanas antes. “Há sempre o suspense de adivinhar quem é o amigo secreto. Vamos dando algumas pistas, verdadeiras ou falsas. Temos um grupo no Facebook onde falamos todos.” “Não é só chegar ali e [dizer]: ‘O teu amigo sou eu e a prenda está entregue.’” “Acaba por ser uma coisa mais pessoal do que oferecer só uma camisola. Acabamos por ter um cuidado especial a escolher a prenda. Tentamos ir percebendo, aos poucos, sem dar muito nas vistas, do que é que essa pessoa realmente precisa”, comenta João Coelho, que não conhece outras famílias que façam o mesmo, mas acredita que no futuro haja mais pessoas a fazê-lo.
A magia do Natal para os mais novos
Joana Tadeu classifica a quantidade de presentes que recebia em pequena como “imoral”. “Não era só uma questão de desperdício. Provocava dificuldade mesmo ao nível da educação. Sei que preocupava o meu pai e a minha mãe, porque [eu] achava que podia pedir tudo e recebia tudo. Sentava-me à frente da televisão, via os anúncios e escrevia todos os brinquedos que apareciam, numa lista para o Pai Natal. E recebia todos, com raras excepções.”
No ano passado, Joana foi mãe pela primeira vez. Escreveu duas cartas pela filha, aquando do seu nascimento e outra pelo Natal, com o objectivo de pedir aos familiares e amigos que oferecessem apenas o essencial e evitassem artigos de plástico. Recordando a sensação de acordar no dia 25 de Dezembro e ver os presentes por abrir, admite que gostaria que a filha tivesse a mesma experiência. “Acho que faz parte da magia do Natal — desembrulhar coisas, o surpreender. É mais a expectativa do que o presente em si.” “Quero que o Natal signifique alguma coisa para ela”, acrescenta.
Como fazer então esse equilíbrio? Para Joana passa, primeiro, por oferecer coisas de que a filha precise realmente. Oferece um exemplo caricato: um autor de um blogue sobre minimalismo embrulhou um ananás e ofereceu à filha pequena. “A miúda não podia ter ficado mais histérica, porque o ananás é uma fruta um bocado maluca. Parece um brinquedo.” De certa forma, acaba por ser mais fácil fazer esta gestão com as prendas para as crianças, “já que as pessoas costumam perguntar do que é que precisam”, aponta.
Chegará o dia em que os amigos da filha comentarão o que cada um recebeu. “Faz parte do crescimento”, responde Joana Tadeu. “É a mesma coisa que chegarem à escola depois do Verão e dizerem para onde foram nas férias. Há gente que foi para uma ilha paradisíaca, há gente que foi para casa dos avós. Acho que o importante é percebermos que existem estas realidades todas. E quanto mais cedo e com maior optimismo nós aprendermos a gerir isso, melhor”, comenta. “O difícil é acharmos que podemos ter tudo e de repente acontece-nos alguma coisa e isso deixa de ser verdade”, acrescenta.
Margarida Vieitez deixa um conselho para os pais e outro para os educadores: “Ensinarem, desde cedo, os seus filhos a não se compararem com ninguém, e muito menos o que têm com aquilo que os outros têm, porque essa é a principal fonte de infelicidade e depressão. Também aqui é premente fazer uma educação para evitar o excesso de consumo, a começar nas escolas, a par de uma educação para os afectos e resolução de conflitos de forma pacífica.”