Não houve excessos no reinado de Agostinho Neto, houve, sim, terrorismo de Estado
Vou conceder-me a dúvida e acreditar que a verdade do 27 de Maio não desaparecerá sob os escombros do esquecimento e que o MPLA tudo fará para se redimir desta vergonha que o mantém historicamente soterrado no lodo da abjecção.
A táctica do silêncio e do malabarismo verbal por parte do regime de Luanda continua na ordem do dia com respeito às medonhas chacinas do 27 de Maio de 1977. De novo se traz à cena um velho e estafado exercício de casuística que é rever esse passado tão funesto da história do MPLA e do país, utilizando argumentos falsos com aparência de verdadeiros para se dizer que as matanças se deveram tão-somente a excessos. Ao perseverar nesta lastimável tese de flexibilização dos conceitos, as autoridades da República, orientadas pelas cúpulas do Partido, dão mostras viscerais de nenhum respeito por milhares de vítimas trucidadas às cegas por todo o território angolano. Tais acções obedeceram a planos rigorosamente concertados nas mais altas esferas do MPLA e do Estado e envolveram destacamentos militares, forças policiais, milícias da ODP (Organização de Defesa Popular) e agentes dos serviços secretos. Nada sucedeu por acaso. Insistir na tese falaciosa de homens sem controlo institucional que agiram por conta própria, significa converter o 27 de Maio numa espécie de anedotário.
Não é de agora este mau hábito nos políticos do MPLA de quererem reinterpretar a história do país e derramar goela abaixo do povo as suas quixotescas versões. Recentemente o novo presidente desta formação partidária surpreendeu a todos com uma interpretação sua enviesada: que Elídio Tomé Alves Machado teria sido o primeiro presidente do MPLA e ele, João Lourenço, passa a ser assim o quinto. Uma ordem de sucessão ridiculamente imaginada por este mandatário que, no fundo, espelha bem a tendência no MPLA de dar asas a cânticos de sereias com a finalidade de ludibriar os espíritos desavisados. O que importa é recriar os factos e dar-lhes uma outra argamassa subjectiva para manter de pé a grande mentira histórica sobre a criação do MPLA em 1956. Ilídio Machado nunca respondeu por aquela função. Presidiu, isso sim, aos destinos do MIA (Movimento de Independência de Angola). Todavia, no curto lapso de tempo de actividade deste grupo clandestino em Luanda, o MPLA nem existia. Só despontou no palco da história em 1960. Com estes artifícios engrandecem-se pomposos nadas na mira de recriar o calendário mágico da fundação do MPLA e fazer que tudo permaneça um entretenimento ao sabor dos devaneios cronológicos e das narrativas absurdas dos hierarcas do regime. O fundamental é prolongar o máximo possível o tempo de vida de uma falsificação que vem de longe. Consultar historiadores e outros estudiosos destas matérias e ter com eles discussões construtivas, é perda de tempo para tais senhores. Os estudiosos não afinados com o sermonário do MPLA são tratados como inimigos e agredidos com uma linguagem despudorada.
Com o fenómeno 27 de Maio as tintas da retórica são as mesmas, só mudam os humores. Cada vez que se publica um texto ou um livro a pôr a descoberto as atrocidades que ensombraram a história pátria daquele período – em que se decapitou grande parte da militância do MPLA e se dizimaram numerosos adeptos cristãos, as Testemunhas de Jeová –, o Bureau Político é tomado de fúrias ciclópicas. Igual ao tubarão feroz de grandes dentes que não esconde o que é, o MPLA deixa cair toda a liturgia do seu autoritarismo e nega o papel de Agostinho Neto como grande carniceiro do seu povo. Do mesmo modo que nega a responsabilidade de Lúcio Lara, “Iko” Carreira e outras altas hierarquias do Partido e do Estado nessa orgia de barbaridades. Avessos à pluralidade do mundo e à sua diversidade cognitiva, os círculos do Poder até hoje têm posto especial empenho num objectivo estratégico de domínio das populações: obrigar a sociedade a aceitar as suas matérias de crença partidária, moldar os currículos do sistema educativo ao capricho das suas doutrinas e legitimar desta forma os relatos da sua história partidarizada e cimentar nas pessoas a sua ideologia concentracionária.
Exemplo fulgurante desta teimosa desconstrução conceitual do passado são as palavras do ministro da Justiça e dos Direitos Humanos de Angola proferidas recentemente: que se cometeram “excessos” no 27 de Maio, com “execuções e detenções sumárias” numa “reacção excessiva aos acontecimentos que se seguiram à tentativa de golpe de Estado”; e que “muitos desses actos ocorridos na altura atentaram contra os Direitos Humanos”. Ou seja, reconhece-se que “houve execuções e prisões arbitrárias”. E nada mais. Pois, eu que vivi em carne e osso o auge dessas matanças e estive muito perto de ser também reduzido a uma máscara morta, porventura devo regozijar-me com as palavras do ministro e agradecer a confissão que ele faz dos excessos?
Em consciência agradeço, mas considero que por trás deste discurso se esconde uma táctica tortuosa de dar ênfase a elementos menos significantes e, em compensação, evitar-se o fundo de questões onde jazem verdades muito incómodas. Por exemplo, falar tão-somente em excessos e do que daí resultou, o desaparecimento forçado de milhares de vítimas e a prisão extrajudicial de outras pessoas por tempo indeterminado, pressupõe, em primeiro lugar, não reconhecer a existência de responsáveis. Isto é, de sequestradores e assassinos que agiram do princípio ao fim em pirâmide, integrados num sistema de decisões e medidas dimanadas de Agostinho Neto e do Bureau Político. Foi deste patamar do Poder que se baixaram planos e ordens que os chefes do Exército, da Força Aérea, da DISA e de outras forças repressoras executaram. Não é aceitável falar em forças não controladas que fizeram uso ilegal da violência excessiva ou que as matanças decorreram de excessos ou de erros. A avalanche da repressão, com todo o estendal de crueldades e destruições que deixou atrás de si, foi de natureza sistémica, não houve excessos isolados, como tantas vezes se ouve o MPLA repetir. O sangue jorrou em todas as cidades e aldeias sob o crepitar das metralhadoras dos agentes do Estado. Quem foram os indivíduos que, em nome do Estado e do Partido, implantaram no país um ciclo de medo e de terrorismo contra os cidadãos? Quem foi que ordenou a perseguição por delitos de opinião, a ponto de se encerrarem em masmorras indivíduos cujo único “crime” foi terem lido os escritos de Nito Alves? Quem foi que ordenou a criação de comissões de extermínio e de tribunais ilegais que condenaram à morte pessoas inocentes? Quem ordenou os sequestros, as torturas e outros crimes hediondos? Quem ordenou a cremação de corpos ou o lançamento de cadáveres ao mar, em rios e florestas? Quem ordenou que se sepultassem as vítimas em fossas clandestinas? Quem foram, em resumo, os matadores e onde se encontravam eles em cada momento dos seus crimes?
O índice de selvajaria então atingido nessa fase sinistra é quase inenarrável. Diante de milhares de assassinatos políticos que abalaram Angola e jamais se esquecerão, não hesito afirmar com plena convicção que as prisões, torturas e chacinas dessa época – que se dilataram no tempo por dois anos ininterruptos – selaram uma política de Estado instaurada pela ditadura de Agostinho Neto. A violência terrorista de Estado foi persistente e “judicialmente” ilegítima. Violou-se a Constituição, violaram-se todas as leis, sufocou-se a Procuradoria-Geral da República e sufocaram-se todos os órgãos de justiça na sua institucionalidade. No vértice da pirâmide desse sistema criminoso estava o presidente da República e do Partido enquanto seu principal responsável.
O senhor ministro da Justiça ou qualquer outro mandarim do MPLA, por dignidade do cargo e do regime que serve, tem a obrigação agora de esclarecer estes pontos. Em especial, quem autorizou tamanho banho de sangue. Os governados deste pobre país já não se compadecem com meias palavras. Não se imite o gesto do general Jorge Videla, chefe da Junta Governativa na Argentina que conduziu o país pelos labirintos de uma das mais sangrentas ditaduras no mundo e que tentou também amparar-se no argumento dos excessos e exonerar-se de culpas. Em tribunal respondeu que lhe faltara o controlo sobre todas as suas forças. Só a ele se imputaram inúmeros assassinatos. Quanto aos chefes das Forças Armadas, todos, sem excepção, trataram de descarregar as responsabilidades uns nos outros.
Sempre me habituei a ver no reino do MPLA os seus dirigentes a fazerem o impossível para evitar que se discuta o passado e não se pense nele. O país já nasceu cadáver e amargamente ainda não nasceu para a democracia. Ainda assim, vou arriscar superar em mim o pessimismo de Márcio Coriolano, personagem de Shakespeare, que indignado com Roma, sua pátria, protestava contra “a poeira dos antigos tempos que permanecia irremovível” e dava lugar a erros que cresciam tanto e impediam que se visse a verdade. Vou conceder-me a dúvida e acreditar que a verdade do 27 de Maio não desaparecerá sob os escombros do esquecimento e que o MPLA tudo fará para se redimir desta vergonha que o mantém historicamente soterrado no lodo da abjecção.