So long Mr. Bradley
Passou como um cometa, mas deixou todos a olhar para o escuro do céu com um sorriso. So long, Mr. Bradley!
Primeiro, o rufar da bateria. Depois, um jacto de órgão. A guitarra. O baixo. Novamente o órgão, a bateria pesarosa, sempre. Já todos juntos, cordas como protagonistas, o órgão de fininho, até que, hook, e dêem as vossas boas vindas ao digníssimo trompete. Final do hook e é o órgão quem passa para primeiro plano; o trompete, esse, continua, como na canção, a soprar “Ao ouvido / O sopro do coração / Sopra doido / E o que foi do corpo num turbilhão / E o que foi do corpo alado nas asas do turbilhão”.
Palavras, frases, expressões, interjeições? Sem dúvida: todas elas, porém, instrumentais, melódicas, rítmicas. No princípio, então, não era a voz: naquele que é o último álbum de Charles Bradley, editado já depois do falecimento da Screaming Eagle of Soul em Setembro do ano passado, a mais bela de todas as canções — a que lhe dá título e que por si só já valeria o disco — é essa em que a sua voz está absolutamente, perfeitamente, ausente. E nós ali ficamos, expectantes, à espera de Godot, tentando avistar o americano bondoso que, tardiamente descoberto pela Daptone mas ainda a tempo (aos 63 anos) de presentear o mundo com o seu dom (depois de uma vida de errância dormindo na rua e trabalhando em restaurantes um pouco por toda a América) — num desses belos milagres cósmicos que acontece quando o rei faz anos —, demasiado cedo nos deixou (“Where do we go from here?”, perguntava ele no LP Victim of Love, ao mesmo tempo que nos deixava o post-it: “My brothers and my sisters / It’s time to make this world a private place for the generation to come / Can find love and peace”). Agora ou daqui a 10 anos, seria sempre, em boa verdade, cedo demais; Bradley possuía uma daquelas vozes, aura dos predestinados, e a circunstância de, durante tantas décadas, ter estado afastado da música é, por si só, uma divina injustiça de improvável redenção. Deus foi a tempo, porém, senão de descalçar a bota, pelo menos de desapertar os atacadores quando No Time For Dreaming (2011), o seu primeiro disco, viu finalmente a luz do dia, para unânime gáudio de crítica e público. Depois disso, e num esforço de recuperação do tempo perdido, Bradley editou mais dois belos discos, Victim of Love e Changes, deu concertos pelo mundo inteiro (um inesquecível em Paredes de Coura em 2015 e outro cancelado em 2017, por ocasião da descoberta do cancro que agora o levou) e conquistou o coração de todos que, além da sua humilde personalidade, contactaram com a sua música tremendamente verdadeira, sentida, enfim, soul. Black Velvet (nome do cover act em que Bradley fazia de James Brown quando ainda era um ilustre desconhecido a actuar em clubes nocturnos de segunda), no qual volta — poética ironia — a ser acompanhado pela The Menahan Street Band (o grupo com quem gravou o primeiro disco), não sendo um álbum fabuloso (uns furos bem abaixo dessa estreia), apresenta, desde logo, essa extraordinária canção com que iniciámos estas linhas, simbolicamente ou não situada mesmo a meio do alinhamento, como se a alimentar a expectativa, a esperança de que, depois daqueles três “silenciosos” minutos e meio, Bradley aproveitasse a segunda metade do disco para voltar do olimpo da música negra americana, no qual entrou tardia mas justissimamente. Este álbum póstumo revela-se, todavia, sonicamente rotineiro, convencional, previsível, para o que muito contribui, claro está, o facto de não ter sido pensado nem gravado de raiz, antes um apanhado do que Bradley foi fazendo em estúdio pelo meio dos discos dos últimos anos. Se esta observação menos boa tem razão de ser, o certo é que a escuta não deixa de ser prazerosa, com os arranjos colocados todos no sítio certo pela mão de quem já anda nisto há anos. Também por aqui se entrevê, pois, a importância da voz de Bradley: sem ela, sem a sua força, a sua vulcânica emocionalidade, estas orquestrações bem poderiam cair, se acompanhadas por outra voz, num certo pastiche do funk e da soul clássicos. Bradley, porém, não o permite: entre Can’t Fight The Feeling, o rockeiro e enérgico tiro de partida a enganar a morte (dispensava-se o protagonismo exagerado concedido à secção de sopros, que atira a canção, por momentos, para um certo histrionismo) e o maravilhoso solo do órgão já no final do proto doo-wop de Fly Little Girl (a última faixa, perfeitamente dispensável, é uma versão eléctrica, maximalista, de Victim of Love), a voz do americano vai fintando a banalidade de que Heart of Gold (original de Neil Young) constitui, talvez, o mais claro exemplo. Neste relvado cuja lua central é a soul e os blues, vão-se dispondo, intermitentemente, diversos tons e balanços, da percussão afrobeat de Luv Jones à finalmente colorida (depois da angústia e raiva anteriores) Slip Away, do psicadelismo de Stay Away (irreconhecível original dos Nirvana, da mesma forma que Bradley tinha já recriado a Changes dos Black Sabbath, outro grupo sonicamente distante do seu universo) aos interiores dub de (I Hope You Find) The Good Life, na qual o órgão e o teclado jamaicanos convivem com uma percussão que parece trabalhada a partir de uma caixa de ritmos como a usada por Timmy Thomas nos anos 70 (essa que deu, juntamente com o órgão, o travo distintivo à planetária Hotline Bling de Drake, que samplou Why Can’t We Live Together). “Memories are the corner of my mind”, canta Bradley na sua prisão nostálgica, impasse afectivo de toda uma vida, e na qual apenas durante 6 escassos anos fez aquilo para o que as suas goelas estavam fadadas. Com a sua partida, também ele, velho principezinho de asas abertas na capa desta celebração-despedida (há um raccord entre as capas dos seus discos, rosto sorridente que se vai revelando crescentemente apreensivo), passou a fazer parte dessa perpétua geometria da nossa memória. Fly Little Boy.