Ex-governantes da saúde denunciam pressão da indústria farmacêutica

Foram ministros ou directores-gerais da saúde e contam como sentiram a pressão de grupos farmacêuticos quando estavam em cargos de decisão e até fora deles. Deputados garantem que não foram pressionados para aprovar vacinas para o Programa Nacional de Vacinação.

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Marco Duarte

O alerta partiu da ex-ministra da Saúde Ana Jorge. Nesta quinta-feira em declarações à Antena 1, a ex-governante chamou a atenção para a existência de pressões de grupos farmacêuticos para que certos medicamentos ou vacinas sejam comparticipados ou adquiridos pelo Estado. Não é única a afirmá-lo. “A pressão dos interesses económicos é constante”, diz Constantino Sakellarides, antigo director-geral da Saúde. Também o ex-ministro Correia de Campos afirma que a sentiu quando esteve no Governo. “E de que forma.”

O PÚBLICO falou com vários ex-dirigentes da saúde. Em causa estão três vacinas aprovadas esta semana pelo Parlamento, que deverão integrar o Programa Nacional de Vacinação: rotavírus, meningite B e Papiloma Vírus Humano (HPV) para os rapazes. Todos dizem desconhecer a existência de pressões neste caso em concreto e os deputados negam terem sido alvo dela.

Manuel Carmo Gomes, epidemiologista, membro da Comissão Técnica de Vacinação (CTV) da Direcção-Geral da Saúde (DGS), diz que a decisão “vai sair do bolso dos portugueses quando há tanta coisa mais urgente em saúde.”

“É profundamente lamentável esta vulnerabilidade ao lobby da indústria”, prossegue. E lembra que “há anos” que as farmacêuticas fazem pressão, quer relativamente à vacina do meningo B quer, mais recentemente, a propósito da vacina contra o HPV para rapazes. “Tenho de assumir que os deputados não tomaram a decisão de ânimo leve, portanto decidiram qual o número de doses e quais as idades. Como são responsáveis, arrisco-me a presumir que até negociaram com os produtores um bom preço para cada dose.”

“Muitas vezes as pressões não são directamente sobre as pessoas”, afirma Ana Jorge ao PÚBLICO, dando um exemplo que viveu como assessora do gabinete do Ministério da Saúde, em 2002. “Houve uma campanha feita para se dizer que havia uma epidemia de meningite C. Lançou-se o pânico junto da população. Houve uma pressão brutal para que a vacina fosse adquirida. A vacina é importante, mas não é assim que se faz.” Mais tarde, após um estudo custo-efectividade, a vacina foi introduzida no PNV.

Sobre as três agora aprovadas, diz não ter “nenhum indício” de que tenha existido pressão. Mas “as decisões políticas têm de se centrar sempre em pareceres técnicos sólidos”, defende, referindo que “há pressão sobre os médicos e pediatras para que recomendem a vacina do rotavírus”.

Também Correia de Campos considera “errado” a aprovação de vacinas por parte dos deputados. “Duvido que o Parlamento tenha tomado esta decisão com base em estudos de custo-efectividade. O Parlamento existe para fazer leis e não para gerir e não é um órgão de gestão da saúde”, afirma, acrescentando desconhecer se houve algum tipo de pressão neste caso. Como ministro, sentiu-a? “Claro que senti e de que forma”, diz, referindo-se ao mesmo episódio relatado por Ana Jorge. “A forma como eu senti a pressão foi ao nível de nos serviços de urgência haver uma pessoa encarregada de comunicar a uma empresa de comunicação as crianças que tinham dado entrada nas urgências com sintomas parecidos aos de meningite C” para depois serem noticiados.

Durante o processo de negociação para a comparticipação do medicamento para a hepatite C, em 2013, também o então ministro Paulo Macedo censurou várias vezes a “sistemática pressão para o Estado introduzir a qualquer preço e sem discutir [um medicamento inovador]". A negociação demorou dois anos com o medicamento, que tem uma taxa de cura de 95%, a ser comprado por valor mais baixo.

Um escudo contra a pressão

“A CTV verifica se os riscos de uma vacina são aceitáveis e se os benefícios justificam a sua universalização. A introdução de qualquer vacina no PNV tem enormes reflexos económicos em quem vende. A CTV assegura que nenhuma agenda se sobrepõe para se tomar essa decisão”, diz Constantino Sakellarides. “Não se justifica que nenhum órgão político tome uma decisão sem que haja um órgão técnico que assegure que estas características se verificam.”

“A pressão dos interesses económicos é constante”, continua. Sentiu-as enquanto director-geral da Saúde e depois de sair do cargo. “As pessoas sabem que me dou com uma pessoa que é secretário de Estado, aproveitam uma relação que é de outro tipo para dizer ‘já agora podia dar uma palavrinha’. O facto de fazerem isso, significa que não é um caminho completamente inviável. Senão, ninguém fazia.”

Como todos os entrevistados pelo PÚBLICO, Francisco George, ex-director-geral da Saúde, também desconhece se existiu pressão sobre os deputados. Mas critica a forma como tudo decorreu. “Não faz sentido que sejam eles a desenhar um novo PNV.” Assume que se sente pressão quando se está em cargos de decisão. “Mas sabemos resistir. Ninguém tomou decisões sem fundamentação.”

A directora-geral da Saúde, Graça Freitas, já lamentou não ter sido ouvida. “O Parlamento e bem, porque é uma prerrogativa sua, ouviu quem entendeu. Ouviu a indústria farmacêutica, ouviu outras entidades e não ouviu a DGS nem a CTV presencialmente. Gostaria que tivesse ouvido.” E acrescenta que ao longo dos tempos têm enviado pareceres sobre vacinas, incluindo estas, para a comissão de saúde.

A Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica afirma que só soube da aprovação das vacinas pelo Parlamento “através da comunicação social”. E há pressões da indústria, como as relatadas por ex-governantes? Não quis comentar.

Nenhum dos deputados contactados diz ter sido, alguma vez, alvo de pressões. Carla Cruz, deputada do PCP, partido autor da proposta das vacinas aprovada, explica: “O que nos moveu foi permitir o acesso das famílias à vacinação e reduzir os custos. O PCP considera que o PNV e os ganhos que se obtiveram com a sua universalidade e a sua gratuitidade são importantíssimos.”

A proposta foi sustentada por pareceres de entidades como a Sociedade Portuguesa de Pediatria e o Parlamento recebeu o grupo de estudos do cancro da cabeça e pescoço, que recomenda a vacinação, prossegue. Mais: a deputada diz que o Parlamento não passou “por cima” da DGS. Mas assume que o partido não fez nenhum estudo sobre os custos da medida.

Segundo o deputado bloquista Moisés Ferreira, que também apresentou uma proposta, a iniciativa teve como preocupação “alargar um instrumento importantíssimo do ponto de vista da saúde pública para prevenir mais doenças”. As vacinas aprovadas são das que os pediatras mais recomendam. E o Parlamento decidiu que “passam a ser disponibilizadas gratuitamente”.

Do lado do PSD, Ricardo Baptista Leite nota: “Neste momento só vacina os filhos quem tem capacidade económica.” E critica: “Não é normal que, com tantos países com estas vacinas disponíveis, se demore tanto tempo a ter um parecer da DGS.”

Mas nem todos os partidos votaram a favor: António Sales, do PS, diz que o partido votou contra exactamente porque não foi “ouvida a CTV”. E a abstenção do CDS deveu-se ao facto de achar que a DGS tem “um papel técnico fundamental a quem cabe orientar a tomada de decisão destas questões”, diz a deputada Isabel Galriça Neto.

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