Parlamento tem legitimidade para aprovar vacinas, mas arriscou “má decisão política”
Dois constitucionalistas – um dos quais deputado do PS – defendem que os deputados deviam ter ouvido as entidades do sector para fundamentar a inclusão de novas vacinas no Plano Nacional de Vacinação. Mas não podem "ser os médicos a decidir as questões de políticas públicas”, afirma Reis Novais.
A Constituição é claríssima: compete à Assembleia da República “fazer leis sobre todas as matérias, salvo as reservadas pela Constituição ao Governo”, como se lê no artigo 161º. Mas como “não é suposto que os deputados sejam super-cientistas”, devem munir-se de informação técnica que fundamente as suas decisões. É uma questão de “racionalidade” e “boa política”, como defendem os constitucionalistas Jorge Reis Novais e Pedro Bacelar de Vasconcelos.
“Em termos jurídico-constitucionais, os deputados têm toda a legitimidade para aprovar" as vacinas do Plano Nacional de Vacinação, "porque é uma decisão de política pública, por isso compete à Assembleia da República”, explica Reis Novais, professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito de Lisboa. “Mas sendo uma decisão que tem muito a ver com informação técnica, seria aconselhável que estivessem munidos de todos os pareceres de carácter técnico – e não sei se estavam neste caso”. “Isso pode ser problemático”, acrescenta, considerando que pode mesmo configurar “uma má decisão política caso não esteja sustentada tecnicamente”.
Reis Novais faz um paralelismo com o caso das vacinas do sarampo: “A certa altura conclui-se que começa a haver muitas pessoas susceptíveis de contrair o sarampo. Quem tem de decidir sobre a vacinação obrigatória é a Assembleia da República, não podem ser os médicos nem nenhum organismo técnico a decidir isso. Mas os deputados decidem com informação técnica”, enfatiza, estranhando que o Parlamento não tenha ouvido as autoridades na matéria, como a Comissão Nacional de Vacinação e a Direcção-Geral de Saúde.
Uma opinião muito próxima tem Pedro Bacelar de Vasconcelos, constitucionalista, deputado e presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, que considera que o PS ficou isolado no voto contra “pelas melhores razões”: “Não é suposto que os deputados sejam super-cientistas que conheçam todas as áreas de conhecimento, e por isso mesmo no procedimento legislativo está previsto que, consoante as matérias em causa, são ouvidas as instituições, quer pelos seus interesses, quer pela área do conhecimento que representam, para saber as suas opiniões. Isso é fundamental e indispensável no próprio processo legislativo”.
O que não faz sentido, afirma Bacelar de Vasconcelos, é que “havendo uma comissão específica para estas matérias, e havendo uma notória divisão da comunidade científica relativamente à pertinência desta medida, decidir isto de uma maneira ou de outra, quer fosse por razões puramente orçamentais e financeiras, quer por qualquer outro tipo de razões”. Uma decisão destas implicaria pois, “necessariamente em sede de discussão na especialidade”, ouvir as entidades relacionadas. Não por obrigatoriedade, mas por “questões de bom senso e racionalidade”.
São poucas as matérias em que existe a imposição constitucional ou legal de ouvir determinadas entidades para produzir legislação. Ela existe em relação às Regiões Autónomas em todas as matérias relacionadas com as competências regionais, assim como são obrigatórias as audições das associações representativas dos municípios e das freguesias em matérias de poder local e a participação dos trabalhadores nos regimes laborais de direito público ou privado.
Há também algumas regras dispersas que obrigam a ouvir as organizações representativas da Justiça ou o Conselho Nacional de Educação, por exemplo. Neste caso não havia mas, como sublinha Reis Novais, “é uma questão de boa política os deputados, quando decidem, estarem informados tecnicamente”.