O Estado mete-se em tudo, menos no que importa
Em vez de elencar prioridades por ordem crescente de necessidade – dos que mais precisam para os que menos precisam –, o Estado elenca-as em função dos grupos de pressão – dos que mais gritam para os que menos gritam.
O que é que une tragédias como Entre-os-Rios, Pedrógão Grande ou, agora, Borba? Não é o mero azar, nem a fragilidade da condição humana, nem serem daquelas fatalidades que sempre ocorrem no mundo sem que possamos fazer grande coisa para as evitar. O que une essas tragédias é mesmo a incúria do Estado português na área mais fundamental da sua intervenção – a segurança dos cidadãos e a protecção das suas vidas – e o desleixo a que tem sido votado o interior do país desde que o sector primário se eclipsou. Fora dos grandes círculos urbanos falta quase tudo: vigilância, engenheiros, autarquias com massa crítica, gente qualificada nas mais diversas áreas.
Não é por acaso que as pontes não caem em Lisboa, que os fogos não matam dezenas de pessoas em Sintra ou que as estradas não desabam nas encostas do Porto, apesar de ser aí que há mais pontes, mais pessoas e mais estradas. Com o tremendo apertão no cinto pós-2011 e as cativações pós-2015, aquilo que hoje temos é um Estado com cada vez menos meios para desempenhar as suas funções e a utilizá-los de forma errada. Em vez de elencar prioridades por ordem crescente de necessidade – dos que mais precisam para os que menos precisam –, o Estado elenca-as em função dos grupos de pressão – dos que mais gritam para os que menos gritam. Aqueles que têm mais poder reivindicativo fazem valer a sua força, e o país entretém-se a debater a recuperação do tempo de serviço dos professores e o IVA das touradas, sem que, por um só momento, se discuta a mais vaga visão de futuro para o país. Eis ao que está resumida a política portuguesa: distribuição dos despojos orçamentais.
E, no entanto, por mais estranho que pareça, a função prioritária do Estado não é pagar o ordenado aos funcionários públicos, nem integrar no quadro quem está a recibos verdes. É mesmo assegurar que as pontes não caem e que as estradas não desabam – sobretudo quando a estrada é um carreiro entre duas ravinas de 100 metros de profundidade. Em Borba morreram cinco pessoas, como teriam morrido 50 se fosse um autocarro escolar a passar por ali. A estrada era municipal, portanto, a primeira responsabilidade é obviamente da autarquia. António Costa, aliás, já se apressou a garantir que o Governo não sabia de nada (nunca sabe) e o ministro Pedro Marques declarou não ser hora de apontar culpas, porque a prioridade deve ser dada ao resgate. O facto de o resgate poder demorar semanas e de já não haver ninguém com vida para resgatar parece ser questão de somenos. O que interessa, como sempre, é que se mantenha um respeitável silêncio enquanto não estiver concluído “o inquérito”.
Tudo isto é muito cansativo, e já foi visto demasiadas vezes. O problema não é Borba, como não era Pedrógão Grande ou Entre-os-Rios, porque esses são apenas os sítios onde saiu a fava de um bolo em decomposição acelerada – e, sobre isso, os inquéritos não esclarecem coisíssima nenhuma. O problema é estarmos a criar, cada vez mais, um Estado de fachada, que absorve uma quantidade gigantesca de recursos para alimentar actividades acessórias, enquanto esquece as suas funções essenciais. Um Estado centralista que acha que o país começa no Cais das Colunas e termina no arco da Rua Augusta; um Estado desleixado que mete o nariz em tudo mas não arregaça as mangas para fazer nada; um Estado, enfim, tão majestoso e tão oco como as pedreiras de Borba, que são lindíssimas vistas ao longe, mas que matam quando chegamos perto.