Os 47 milhões de votos de Haddad vão valer-lhe a liderança do PT?
Apesar dos 47 milhões de votos arrecadados, é pouco provável que Haddad suba à liderança dos “petistas”. Mas terá papel importante na oposição a Bolsonaro, provavelmente na "criação de uma frente de defesa da democracia".
Depois de ter perdido as eleições presidenciais para o candidato da direita radical, Jair Bolsonaro, o Partido dos Trabalhadores (PT) tenta reorganizar-se para comandar a oposição ao futuro Presidente. Fernando Haddad foi o candidato dos "petistas", e teve 47 milhões de votos, muito acima do que as sondagens previam. Apesar disso, é pouco provável que seja ele o próximo líder do partido. Mas terá um papel preponderante na estratégia de oposição.
O nome de Haddad dividiu as hostes "petistas" desde que foi escolhido para substituir Lula da Silva como candidato, depois de o ex-Presidente ter sido impedido de se candidatar por estar preso. O número de votos que conseguiu alcançar e a bênção que recebeu de Lula, que é ainda a figura maior do partido, são suficientes para que algumas facções do PT queiram apostar em Haddad no futuro. No entanto, para outros isso não chega e, por isso, o nome do académico gera ainda divisão no seio do partido.
Desta forma, o mais provável é que Haddad fique responsável por uma das frentes de oposição. As outras ficarão a cargo da actual líder do partido, Gleisi Hoffmann, e de Guilherme Boulos, candidato pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).
Ainda assim, Vítor Marchetti, professor de Ciência Política na Universidade Federal do ABC, em São Paulo, não tem dúvidas em afirmar, em respostas enviadas ao PÚBLICO, que não vê, actualmente, “outra liderança mais forte do que Haddad”. No entanto, o PT terá de passar por “uma disputa interna para ocupar esse lugar pós-Lula”.
Transição geracional
“O sistema político brasileiro está a passar por uma transição geracional”, argumenta Marchetti. “Neste cenário acredito que Haddad está habilitado a ocupar esse papel. Tanto pelos votos que recebeu quanto pelas novas agendas que tentou por em prática, quando foi prefeito [presidente da câmara] de São Paulo [2013/2017]".
Por um lado, Haddad é elogiado por ter conseguido alcançar 47 milhões de votos nas presidenciais, quando era um político com pouca expressão nacional e enfrentava um clima desfavorável, devido aos escândalos de corrupção que atingiram em cheio o PT. Por outro, não conseguiu evitar a vitória de Bolsonaro, falhando na formação de uma frente democrática contra o candidato da direita radical.
São fundamentalmente estas duas versões que entram em confronto nas bases “petistas”. Mas há mais potenciais obstáculos à liderança partidária de Haddad.
Ricardo Musse, professor de Sociologia na Universidade de São Paulo, acompanhou de perto a trajectória do PT desde a sua fundação, em 1980. “O PT não é um partido homogéneo”, explica ao PÚBLICO. “O PT congrega alas e militantes que propõem estratégias diferentes para a realização.”
Em primeiro lugar, há quem duvide que Haddad poderia dirigir a oposição sem ocupar qualquer cargo público – após as eleições disse, inclusivamente, que iria voltar a dar aulas na Universidade de São Paulo.
Em segundo, o facto de não ter sido acalmado o sentimento “antipetista” fez com que estejam em preparação blocos de oposição no Congresso brasileiro que querem deixar de fora o PT. Nomeadamente uma articulação já em curso entre Partido Socialista Brasileiro (PSB, de centro-esquerda), o Partido Democrático Trabalhista (PDT, centro-esquerda) e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que, juntos, ultrapassam o número de deputados do PT; e a intenção de Ciro Gomes, candidato do PDT que ficou em terceiro na primeira volta e que é um forte crítico do PT e de Lula, de formar também ele um campo político de oposição a Bolsonaro e aos “petistas”.
O objectivo de ambas as jogadas é retirar a hegemonia do PT no Congresso. Contudo, Marchetti duvida que isso seja suficiente para retirar protagonismo ao PT no campo da oposição: “Além de ter a maior bancada no Congresso, conseguiu eleger quatro governadores e recebeu uma votação no segundo turno bastante expressiva”, explica, acrescentando que, “para além desta força institucional”, nenhum outro partido tem a força do PT no que respeita aos “movimentos sociais e sindicais”.
Divisão de tarefas
Uma coisa pode ainda jogar a favor de Haddad internamente. De acordo com o que foi noticiado, Lula deu a sua bênção à escolha do académico para liderar a oposição do PT e aconselhou o partido a deixá-lo escolher a forma como o quer fazer. Isto pode acalmar algumas facções “petistas”, pois o ex-Presidente, apesar de estar preso, é ainda visto como o seu grande mentor.
Mas isto pode funcionar como uma faca de dois gumes. Porque os analistas apontam que muitos dos 47 milhões de votos que Haddad recebeu foram de oposição a Bolsonaro, e não propriamente de apoio ao PT. Pelo que, se Lula continuar a servir como líder de facto do partido, este arrisca-se a perder grande parte deste eleitorado.
Aliás, no seu discurso de derrota, Haddad voltou a lembrar o “golpe” imposto à antiga Presidente Dilma Rousseff com o processo que levou à sua destituição e a “prisão injusta” de Lula. E, na semana passada, visitou-o na prisão de Curitiba (algo que fez semanalmente durante a campanha), pela primeira vez desde as eleições.
Também na semana passada, o antigo autarca de São Paulo esteve reunido com a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, para discutir o seu futuro. Antes disso, a cúpula “petista” também se reuniu para discutir o tema. De acordo com as notícias avançadas pela comunicação social brasileira, a possibilidade de Haddad assumir a presidência do partido tornou-se pouco provável mas a intenção é que o professor assuma destaque na oposição a Bolsonaro.
Musse prevê uma “divisão de tarefas”, englobando as três grandes áreas de actuação do PT: “Fernando Haddad ficará encarregado de comandar a oposição política, com a tarefa de viabilizar a criação de uma frente de defesa da democracia, congregando parcelas da sociedade civil, políticos, personalidades etc. Sua actuação deve se limitar a esse campo, pois não controla a máquina partidária do PT nem possui raízes no movimento social”.
Hoffmann, cujo mandato termina em Julho do próximo ano, ficará responsável, segundo a previsão de Musse, por “organizar a oposição parlamentar e de mobilizar a militância tradicional do PT”.
Por último, “a tarefa de comandar a resistência social, de mobilizar os movimentos sociais, ficará a cargo de Guilherme Boulos”, diz ainda o professor de Sociologia. “Embora tenha sido candidato a presidente pelo PSOL, ele goza da simpatia e da confiança da direcção do PT”.