A Companhia Maior parte rumo ao futuro
Com direcção de Joana Craveiro, Mapa Mundi é uma “ficção científica autobiográfica” criada para a Companhia Maior apresentar no Centro Cultural de Belém.
Nos últimos anos, temo-nos habituado a apanhar boleia de Joana Craveiro e do seu Teatro do Vestido para visitarmos o passado recente da História portuguesa. Em especial, no respeitante ao período do Estado Novo e ao pós-revolução. Em peças como Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas, Filhos do Retorno ou Labor#2, essas digressões assentavam em depoimentos orais que ajudavam a construir uma narrativa para lá da frieza oficial e ofereciam um relato afectivo e subjectivo, feito de olhares que são sempre rasurados das versões oficiais. E é que assim que se instala o espanto ao vermos Joana Craveiro, na sua criação e encenação para o colectivo sénior Companhia Maior, partir rumo ao futuro nesta “ficção científica autobiográfica” que é Mapa Mundi, em cena no Centro Cultural de Belém, Lisboa, entre esta sexta-feira e 12 de Novembro.
Na muito pessoal ficção científica de Mapa Mundi, os alienígenas não trajam necessariamente de verde e é mais fácil reconhecê-los como “os outros”, “os que chegam de fora”, aqueles que podem, resume Joana Craveiro, “chegar para colonizar ou para sobreviver, dependendo da situação”. A ficção científica foi sobretudo o mote para colocar um conjunto de 22 actores – 17 da Companhia Maior e cinco do Teatro do Vestido – “a falar e a reflectir sobre uma ideia de esperança e de continuidade”. E isto porque, como convém em histórias afectas a este género, há um novo mundo a ser debatido e criado em Mapa Mundi.
Só que este novo mundo – e é aqui que entra a natureza garimpeira da encenadora, ao escavar nas memórias dos seus actores para construir um espectáculo – é, em boa parte, erigido a partir de conversas em que Joana Craveiro pediu aos elementos da Companhia Maior que relatassem a forma “como, em pequenos, imaginavam que o mundo viria a ser no futuro, como é que assimilaram as transformações do mundo e para onde imaginam que o mundo esteja a caminhar”. “É uma reflexão bastante existencialista sobre o sentido da vida, a continuidade, o que fica”, reconhece. “O espectáculo acabou por tornar-se muito filosófico acerca daquilo que eles discorriam nos nossos exercícios. Até porque a ficção científica, as utopias e as distopias, permitem-nos falar da condição humana e de como ela evolui.”
E é assim que, pouco depois das boas-vindas a esse novo mundo com que recebem o público, os actores começam a descrevê-lo como um lugar onde existem pessoas, oceanos, baleias, fome, futebol, flamingos, liberdade, notícias, solidariedade, médicos, eleições ou ódio – tudo coisas que, em doses maiores ou menores, descobrimos no planeta que habitamos hoje. Acontece que as várias peças da descrição, reconhece a encenadora, podem não corresponder a um mesmo mundo. Pode ser apenas uma lista de características de lugares diferentes que, em cima do palco do CCB, ganham uma momentânea vida comum.
Multiplicações
À procura de um espectáculo que aponte caminhos diferentes do teatro de memórias políticas de que se tem alimentado, Joana Craveiro sabia também que a ditadura tinha já sido trabalhada com a Companhia Maior através da criação Estalo Novo, orientada por Ana Borralho e João Galante — todos os anos a companhia desafia um diferente encenador/autor para trabalharem juntos —, ao mesmo tempo que as histórias pessoais de alguns dos intérpretes surgiram já em Um Museu Vivo e Filhos do Retorno. Daí que, desta vez, tenha querido fugir dessas temáticas, acabando por encontrar apoios em referências reais como A Guerra dos Mundos – e a memória do programa que Orson Welles apresentou em 1938 na CBS, quando a sua adaptação do livro de H.G. Wells deixou os ouvintes em pânico, convencidos de que havia uma invasão marciana a caminho — que tiram partido do facto de vários actores da companhia terem sido profissionais da rádio.
Ainda assim, o cruzamento com outras referências será mais evidente na inserção de imagens do filme As Asas do Desejo, de Wim Wenders, accionadas pela recordação de Cristina Gonçalves de uma fotografia da sua infância em que ostentava umas asas de anjo partidas. Essa história chegou aos ouvidos de Joana Craveiro num workshop com a Companhia Maior realizado ainda antes de ser convidada a dirigir o presente espectáculo. Logo nessa altura, Joana soube que, à primeira oportunidade, havia de regressar àquele pedaço de passado. Quando, mais tarde, mostrou o excerto do filme em que Marion se baloiça no trapézio, logo outra actriz se manifestou gabando a beleza da cena e confessando o quanto aprendeu sobre o amor nessas imagens. “Quando se traz uma coisa para a sala de ensaios, essa coisa multiplica-se”, reconhece a encenadora.
E Mapa Mundi é também isso: sem que nos apercebamos, cada frase de uma escrita sem receio de ser poética – “Cada vez estou mais interessada nessa forma para falar sobre as coisas, mesmo que sejam coisas muito concretas”, diz Joana –, vai-se multiplicando também no olhar do espectador.